Junho 1174- 2024
850 anos dos forais Thomar II e Ozezar
Sabedor da ocorrência de roubos e injustiças na região de Tomar e Zêzere – onde já haveria várias centenas de colonos com suas famílias, demonstrando ser o seu povoamento um caso de sucesso ao fim de apenas 12 anos, o mestre templário Gualdim Pais conclui da necessidade de nova carta de firmidão estabelecendo normas jurídicas precisas.
Este 2º foral vem assim completar o anterior (de 1162) regulando melhor a vida na comunidade: precisando as coimas para os delitos contra outrem, contra a família, contra a propriedade e contra o senhorio.
Carta que se inicia pela fórmula “ Assim como se lê em Salomão: amai a justiça vós que julgais na Terra” e que se repete nos forais de Ozêzar e Pombal, mostrando assim que aqueles cavaleiros não se chamam Salomónicos, apenas porque se sediaram originalmente junto ao templo de Salomão em Jerusalém, mas sim pelo seu conhecimento de Salomão e dos salmos bíblicos, de onde retiraram aliás seu hino único entre as Ordens religiosas e militares! O preâmbulo (deste foral) lembra ainda as influências espirituais crúzias de Gualdim, segundo a fórmula das Cartas de Liberdade nas comunidades de Regrantes, que afirmam o desprezo de bens terrenos e a intenção de os utilizar para alcançar a vida eterna.
II FORAL a THOMAR - 1174
“ Em nome de santa Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, Porque Deus Todo Poderoso, recto juiz, manda a todos os senhorios com poderio na Terra para governarem os pequenos (dependentes), em Justiça e Igualdade, assim como se lê em Salomão: amai a justiça vós que julgais na terra.
Por isso eu Mestre Gualdim, avisado pela mercê de Deus, conjuntamente com meus freires, concluímos da necessidade de livrar de danos e roubos o povo em nosso domínio.
Pensando mais em alcançar a saúde das almas que a defesa das cousas temporais e
ilusórias, damos porém (estes) degredos (leis) nas terras sob nosso poder estabelecidas.
Se alguém raptar ou matar ou assaltar casas com armas ou ferir ou quebrar portas no couto de Tomar, peite (pague) 500 soldos e se fora da vila peite 60 soldos.
Mando que cada um tome aquela que haja recebido por mulher ou filha sua que ainda não for casada, onde quer que a achar, sem dano e o filho que seu pai tiver em casa por ser mancebo, tome-o sem dano onde quer que o achar, se não quebrar portas ou ferir alguém ao apanhá-lo.
Por lançamento de esterco à boca de outrém, em qualquer lugar que o faça,peite 60 soldos.
Se alguém ferir pessoa de sua condição por ira, no couto da vila, pague 60 soldos
e se fôr fora 30 soldos. Só feridas intencionais e não outras.
Quem juntar amigos ou parentes com armas e paus, e se ferir outrém , se o provar ser verdade a inquirição, pague 60 soldos.
E por membro mutilado pague 60 soldos.
Por todas as feridas, que deva reparar, sofra castigo com vergasta (açoutado com vara) segundo o foro velho de Coimbra ou indemnização àquele a quem deve satisfazer (vítima).
O sinal do alcaide ou do juiz, seja tido por testemunho. (Contas serão prestadas apenas perante o alcaide ou juiz).
A casa de alguém não seja penhorada, antes de ser chamado a juízo (ou seja: ninguém pode ser condenado, sem primeiro ser julgado).
Se alguém demandar algo de outrém, responda perante as justiças e o comendador da casa, por direito.
Se algum devedor fôr revel e aquele a quem deve , não puder reaver o que lhe pertence, se este fizer composição (acordo) com o mordomo, este (último) não haja senão a décima do que tirar dos bens do revel, salvo se fôr de usura(empréstimo com juros); se o fôr, fique com quanto acordar com ele.
Todas as acções do mordomo sejam por recta averiguação (ou seja: as penas devem ser precedidas de audição de testemunhas).
Quem souber a verdade e a falsear na inquirição (falso testemunho), indemnize-se quanto fez perder àquele e ao senhor da terra outro tanto (de coima) e nunca mais seja aceite como testemunha. Se algum vozeiro (procurador) se compuser (conluiar) com o mordomo, e se provar que recebeu algo por isso, acorde /indemnize segundo o valor da demanda e se não tiver com que pague seja atormentado (castigo corporal) e não seja mais ouvido , salvo se der fiador, nas mãos da justiça.
Proibimos a todos aqueles que fazem de procuradores (vozeiros) falsos, e não têm procuração (carta) para tal, pois certamente por tal (praga) toda a terra é prejudicada.
Se alguém se queixar em Concelho de alguma coisa, que o Mordomo e a Justiça estejam presentes, e o mordomo não tome aquela queixa por voz (procuração) salvo se aquele que a queixa fizer, disser ao mordomo: “Dou a ti esta queixa por voz” (comportando-se assim como procurador).
Se alguém em defesa do seu agro (campo) ou da sua vinha ou de sua almuinha (horta) bater no ofensor e este seja ferido ou chagado, o senhor da vinha não pague e se o ofensor ferir o dono, satisfaça-o e qualquer dano que aí fizer corrija-lho.
Proibimos que alguém empunhe armas na vila; se as usar mesmo sem ferir, perca-as.
Se alguém falsear medidas ou côvados peite (pague) 5 soldos.
Se alguém tomar algo à força de casa de outrem ou de fora, e o seu dono apresentar denúncia ao comendador, alcaide ou justiça, ou mordomo, pague a dobrar.
Se alguém em juízo acusar sua mulher de adúltera, os seus bens sejam em poder
do senhor da terra.
Proibimos que alguém ouse cortar com vala, carreiros ou estradas públicas do
concelho ou meta marcos. Quem aquesto (isto) fizer, corrija-o pelo uso da terra.
Jugadas sejam por quarteiro (medida) de 16 alqueires, do costume.
O Almotacé seja do Concelho. Mordomo, saião e justiças e porteiro do alcaide, sejam coutados (afiançados) em 500 soldos .
Quem fizer furto, pague segundo o costume da terra ou seja condenado. Quem achar ladrão ou criminoso prenda-o segundo seu poder, sem morte ou vingança dos parentes. (pois era frequente os ajustes de contas pessoais, a vingar o “sangue”).
Se alguém entrar em vinha ou almoinha de outrém, furtivamente de dia, por motivo de comer ou meter o seu animal na forragem de alguém, pague 5 soldos.
Se alguém trouxer alguma cousa da vinha ou almoinha no regaço ou cesto ou taleigo ou ceifar forragem pague 1 maravedi. E se alguém de noite fôr apanhado furtivamente em vinha ou forragem ou almoinha, pague 60 soldos e o que trouxer vestido; e do dito que pagar, haja o dono do agro a metade (a outra metade à Ordem) e se não tiver com que pagar, prendam-no por 1 dia (mão pregada na porta) e depois açoutem-no.
Se mouro de alguém, sem correntes, fizer danos, seu senhor responda por ele segundo o dano que fizer ou deixe-o na mão do mordomo. O mordomo não prenda mouro de alguém, se trouxer correntes, ou moura solta, por qualquer dano, mas se o senhor da terra e o concelho acharem que tal cousa fez que deva ser apedrejado ou condenado à fogueira, apedrejem-no e queimem-no. Se tal cousa fez, que deva ser açoitado, açoutem-no e depois que forem açoutados, tanto o mouro como a moura, dai-os a seu dono. ( No Andaluz muçulmano, também se previa a morte para certos casos, com cativos cristãos...)
Quem servir de fiador, se não cumprir segundo o acordado, pague o necessário.
Quem vender vinho no período de relego (tempo em que a prioridade de venda do vinho era do senhorio) pague 60 soldos e por quantas vezes fôr achado a vender o vinho, por essas tantas, pague 60 soldos.
E toda a besta de carga que vai à eira ou lagar (fazer transporte de aluguel) faça foro de almocreve. (faça ou pague o serviço de um dia por ano)
Estes crimes mandamos julgar e não outros.
Dos moinhos não tomem senão de cada 14 alqueires um (taxa de moagem), sem dádivas (gratificação).
As maquias (medidas) sejam aquelas que as justiças e o concelho acharem por direito e se o moleiro outra cousa fizer, este, com todos os seus haveres seja em poder do mestre (preso).
Se o mordomo ou justiças, quebrarem este nosso direito, por dinheiro ou por compadrio (corrupção) ele e os seus bens sejam em poder do Mestre e dos Freires.
E de jugada (tributo) mandamos que os lavradores deêm por jugo (junta) de bois seis quarteiros (= 1.5 moios: 96 alqueires); e 3 sejam da melhor colheita que fizerem, ou seja: de trigo, cevada e centeio. E de milho painço se o semearem, outros 3 quarteiros.
E qualquer lavrador que trabalhe com 2 jugos ou 3 ou 4 ou 10 ou 20, não dê mais de 6 quarteiros, por cada jugo, se trabalhar todo o campo.
E o cavão (só enxada, sem bois) dê de jugada 6 alqueires. Se fizer mais de 3 geiras de terra, dê 1 quarteiro (de jugada). E esta seja por quarteiro de 16 alqueires, pela medida do concelho.
Feita esta carta de Firmidão, no mês de Junho.
Era da Encarnação de Deus de 1174.
Eu Meestre Gualdim, que esta carta fazer mandei em sembra com todolos meus freires morantes em tomar aos vosos filhos e aos vosos suçesores afortalego e confirmo
Reinante dom Afonso Rey de Portugal filho do grande Rey dom Afonso neto do conde don Anrique e de dona Tareija e seu filho Rey dom Sancho com elle e sa molher Rainha dona Doçe.
Joanne clerigo de missa a fez: testemunhas frey arnardo ronchis, frey soeiro vermuiz, e frey elias, e frey manço, e frey martinho, e frey pedro, e frey ioane de gassia clerigo de missa. O conde dom afonso, pedro garsia alcaide de coimbra, pedro fernandiz, meestre fernando a uio, saluador meendiz, dom sancho, pay romeu (dos da Maia), martim de roma, pedro de calderas, pedro muniz, pedro cassia, Garsia vermuiz(+1175,S.Pedro Fins), pedro meendiz, pedrairas justiça, gonsal boroa, pcdro gonsaluiz, testimoinhas.
Acerca deste Foral:
A Ordem nomeia justiças vilões (que devem ser integros,não sujeitos a corrupção) e que se rodeiam de seus oficiais (como o saião) e que em concelho (reunião) de homens-bons da vila, julgam os casos havidos, com audição obrigatória de testemunhas.
O mordomo anda pelos lugares fazendo a cobrança dos foros e aplicando coimas; enquanto o almotacé fiscaliza as trocas mercantis e as medidas usadas, segundo o padrão aprovado.
Esta figura do Almotaçé reporta-se aliás à tradição muçulmana e ao modelo andaluz almorávida, segundo o Tratado jurídico sevilhano de Ibn Abdun, cujo artigo 32º afirma ser o almotaçé a “língua do juiz”, seu lugar-tenente, homem de bons costumes, rico e considerado, que exige o cumprimento da Lei.
Oficial usualmente bem ligado ao concelho; assim em actas medievais da vereação de Braga - a título de exemplo e informação - observa-se que nos primeiros meses do ano (que começa em Março) serão almotacés: no 1º mês os 2 juízes velhos (do ano anterior), no 2º mês 2 vereadores, no 3º mês 1 procurador e 1 vereador, nos outros meses homens-bons escolhidos por pelouros.
Por outro lado, como fonte de receitas da Ordem, estabelece-se a Portagem, ou seja a cada porta (entrada) da vila, são postos 2 homens-bons que verificam, um a um, os mercadores e as mercancias (caça e pesca) que por ali passam, aplicando-lhes taxas próprias, das quais os vizinhos (residentes) estão isentos.
Quanto às coimas, geralmente metade da importância pertence ao ofendido e a outra metade da receita, é para o senhorio da Ordem (Templo)...Aplica-se a punição física apenas aos de condição inferior ou aos que não possam pagar a coima estabelecida.
A jugada (originalmente, lavra com jugo de bois) costumava pagar-se pelos dias santos festivos até ao Natal e segundo os costumes de Coimbra, só se paga 3 anos depois de começar a cultivar.
Da parte da carta referente à jugada, se pode aliás inferir as condições de vida da peonagem cultivadora, segundo suas terras. Sendo a geira, a extensão de terra que uma junta de bois pode lavrar em um dia, que é próxima de 0,4 hectares e sabendo que nesta extensão se podem semear 4 alqueires de cereal, que por sua vez frutificará em média o quádruplo, teremos então, o quadro seguinte. Para o caso do cavão com 3 geiras de terra, ou seja 1.2 hectares; ali semeará 12 alqueires e colherá 48. Pagando 6 alqueires segundo o foral, fica com 42 alqueires, ou seja 420 Kg de cereal panificável.
Ora, nesta altura, um homem do campo come em média 0.8 kg de pão por dia, o que dá ao ano 300 kg de pão ( se não houver percas na transformação, nem crises agrícolas...) sobrando-lhe então 120 kg ou seja 12 alqueires, exactamente aquilo que ele necessita de guardar para semente para o próximo ano! Uma vida de sobrevivência pura...
Quanto ao caso de um casal com por exemplo umas 30 geiras de terra, a situação seria francamente melhor: semearia 120 alqueires, colheria 480, pagaria 96 alqueires (6 quarteiros de 16 alqueires cada). Reservando outros 120 para semente no ano seguinte, ficaria com 264... mas como teria umas 4 bocas para alimentar (média humana de 1 casal de vizinhos) gastaria uns 120 alqueires panificáveis (a 30 por boca, como já vimos) restando-lhe 144 (mas se tivesse 2 jugos de bois, pagaria mais 96, restando-lhe 48 para vender ou para guardar para anos de crise...
Já o vinho, esse era grande alegria das almas e conforto dos corpos, pois rendia muito mais (embora tivesse de esperar uns 5 anos para começar a colher bem, nos anos seguintes). Um hectare de pés de vinha, podia render uns 4.000 litros de vinho, pagando 1/8 do foro (500 litros) restavam 3.500... e bebendo-se nesta época 2 litros/dia (necessário ao esforço físico) ou seja uns 730 litros anuais e mesmo que fosse uma família a beber por igual, ainda sobrariam para cima de 500 litros!
De mais e incomparável alegria, gozavam os freis do Templo, que o tomavam por sangue de Cristo- a “santa taverna de seu precioso corpo” (nas palavras de um monge franco) - e fonte de vida, (certamente como tal e não por acaso...colocaram uma laje com parra de uvas desenhadas a servir de dintel numa das portas do seu castelo em Soure!) e aqui a sul de S.Maria , fabricaram bom cerrado de vinha –certamente para os seus ofícios religiosos...principalmente aqueles em que se derramava vinho sobre o altar e se bebia dele.. em quantidade quiçá...porque a pedra era grande!
Também no arrabalde do castelo a que se chamava S.Martinho-o patrono do vinho- os monges interiorizavam a espiritualidade da vinha , segundo as Homilias Clementinas: os santos são os sarmentos, os mártires as uvas, os viticultores os anjos,o lagar a igreja ,o vinho a força do espírito (e não só)..
Pois que mercê dos foros recebidos, podiam atribuir 3,5 litros de vinho a cada frei , por dia, daí resultando a energia própria à duplicação do inimigo em combate (rachando-o a meio com o montante) ou até decuplicando-o nas crónicas monásticas (acrescentando mais um zero, no número de inimigos derrotados !)...Deo Gratias!