Vamos traçar um quadro das varias origens
possiveis da estoria de Santa Iria nos tempos medievos ate chegar ao ultimo
seculo em cujo dealbar apareceu, em pleno Chiado de Lisboa como uma santa modernizada , e primeiro caso
conhecido na igreja, a publicitar um sabonete...como cuidados a ter com a pele
! Isto ha cem anos , na vanguarda da moda!
Este texto e’ constituido por excertos do livro
pro-biografico de Gualdim Pais “ O Mestre Templario na fundacao de Portugal” e
toma neste assunto a forma de um debate entre sabios...Devido a sua extensao ,
sera dividido em 3 partes, a sair sucessivamente ...
1 – Reflexao Santarena : A proposito da conquista de Santarem
...Na Ribeira, de ruas estreitas e sinuosas, que o
rio amiude invade, fundam os do Templo a igreja de Santiago, onde colocam
capelão da Ordem.
Também pertencendo à colegiada de Sta. Maria da Alcaçova, ali se
edifica outra capela dedicada a Sta. Iria, sendo seu 1º clérigo: Garcia Mendes.
Segundo uma tradição, no areal defronte aparecera um túmulo de mármore com o
corpo desta Santa (assediada por um monge e degolada a mando do filho dum conde
godo,no ano 653) e que logo fôra coberto
pelas águas do Tejo; mas cuja memória e culto se tinham perpetuado em Scalabis,
chegando a mudar-se o nome deste loco para Santarém (de Stª Iria) no tempo do
rei Godo Recesvinto, que ali fizera erguer um basílica,junto ao rio...
(Intermezzo )
A Assembleia dos 8 Sábios
reunidos na Torre , debatem
entretanto , esta bela estória digna da Legenda
Aurea...
Diz o 1º sábio – O que sabemos
deste rei - Recesvinto – é que iniciou o
seu governo, por coincidência, em Outubro deste ano de 653, por morte de seu
pai em 30 de Setembro ... E caso a norma, quanto à coroação entre os reis godos
seja um intervalo de três semanas - como aconteceu a seu sucessor - então
Recesvinto deve ter sido coroado à volta de 20 de Outubro, o que não deixa de
ser uma coincidência singular com a data em que se comemora Stª Iria...
Com Recesvinto atingiu-se o
apogeu da Hespanha Goda, celebrando-se ainda nesse ano o 8º concílio de Toledo
- na nova igreja de S. Leocádia - onde se fez a revisão do código visigótico e se tratou dos costumes do
clero,em degradação. É também o ano em que se reduzem os limites da Galécia ao
rio Douro, afastando-a pois da diocese de Coimbra - a qual vai até Sélio ou
Selium (Tomar), uma das suas sete paróquias. Posteriormente a divisio de Wamba(672/680) confirma-o.
Na época daquele rei convertido e piedoso - ofertante à Igreja
de uma rica coroa votiva em ouro e pedras preciosas - realizaram-se ainda mais
dois concílios: o 9º e o 10º (neste participou S.Frutuoso de Braga-em 656) onde
se continuou a tratar de matéria disciplinar,com incidência na vida monástica .
Tal como Clovis o rei franco
merovingio, convertido ao catolicismo,escolheu como seu atributo a flor de iris
ou lirio (abundante nas margens do rio LYS do mesmo nome,junto a Poitiers onde
vencera os arianos em 507.).. também
agora provávelmente à sua imagem (principal força político-religiosa a Ocidente) tal fizera este
rei godo cristão trinitario e campeão dos concilios ( 3 em seu reinado)
...Significativo: ..a flor do lirio
representa-se com 3 petalas e um caule–significando a Trindade e os 3
Ps: Pureza,Perfeição e Pharol ou luz do mundo...... Eis assim a santa Iris de Clovis (o luminar e modelo da
igreja da época)...assinalada junto ao rio agora
godo-cristão...-...pura,perfeita e luminosa... afinal nem Salomão na sua
magnificência se vestia assim..como os lirios .(.dizem as Escrituras )...
2º sábio- Ilustre colega, ...realmente a haver uma mártir, à época, o estranho é que tanto o
bispo de Coimbra, Sisiberto, como o próprio S.Frutuoso, bispo de Braga, não se
lhe referem em nenhum escrito ; embora este último, praticasse anualmente a
reunião abacial, e portanto estivesse bem informado...(O que não obsta a que
para a mesma época o bispo Ildefonso
refira até os pretensos milagres de Donato,o coevo monge transfuga! Com
maioria de razão alguém falaria na época de uma mártir que ia dar nome a uma
cidade!)...Ora três séculos depois (sec. X), o calendário místico de Córdoba
(expoente da convivência cultural e religiosa, arabe e latina, na Peninsula),
onde se anotam as festas dos santos cristãos, continua omisso neste facto. O
que a comunidade paleo-cristã e moçárabe venera são antigos mártires da época
romana e não goda (!)...como S.Vicente e S.Brás.
3ºsábio- Para nós,se há algo
que é “decapitado” efectivamente naquele ano (653) é a paz ou estado de graça
entre o Papa e o Imperador; concretamente 653 é a data insólita da prisão,
julgamento e exílio(na Crimeia onde morre)
de um Papa de Roma - Martinho I - por um Imperador cristão de
Constantinopola - Constante II ...é um
tempo de ruptura,face ao simbolo de Atanasio: “Perfectus Deus,perfectus
homo”.
Martinho I acabava de condenar
- no sinodo de Latrão- a doutrina do
monotelismo (que afirma ter cristo duas naturezas, uma humana e outra divina,
mas uma só vontade) estando em vigor - por parte de Constante II - a proibição
de qualquer discussão no império acerca das naturezas e atributos de Cristo,
questão que dividia gravemente os cristãos ... e não se pode esquecer que nessa
mesma altura, nascia também um novo e perigoso concorrente da Bíblia: O Corão
que começava a unificar sólidamente as fileiras dos seus vizinhos infiéis a
Oriente, passada à escrita a doutrina oral dos surates (versículos)...enquanto
Jerusalém –a Amada- caia em mãos
infiéis...e era governada pelos Omíadas...
4º sábio- O que temos como
certo é que, durante o sec. V com a quebra da estrutura civil romana e o
desaparecimento da sua organização militar, ao longo nomeadamente, da estrada
romana Scalabis - Conimbriga - aliada aos confrontos bárbaros na zona - estas
duas cidades se reduzem lentamente a meros aldeamentos de ínfima importância,
apenas pontos de referência. E tal como na vizinhança de Conimbriga, nasceu
Coimbra assim também - e a geografia árabe refere-o - ao lado da Scalabis
romana vai surgindo uma nova povoação crescente de importância, na Ribeira,
junto ao Tejo, área de grande fertilidade.
Iacube - ainda no século XII - fará essa distinção,
entre os dois locos ...
Ora, segundo a crónica do bispo
Idácio de Chaves, esta região é tomada por Sunerico ao serviço dos visigodos,
no séc V.(460)
E falando da origem do nome deste loco- É muito possível
que, tal como na Hespanha, a Andaluzia (passando por Vandalícia) procede dos
Vândalos que a tomaram aos romanos, assim também a região de que estamos a
tratar, tomasse o nome do seu presor - Sunerico - o que na evolução da
linguagem terá dado posteriormente a Senerigo
de que nos falam os relatos da conquista em 1147 por Afonso Henriques.
(Ainda no século seguinte constatamos o godo Leogivildo,fundando
cidades: Victoriam e Recópolis-esta em homenagem ao filho-junto ao Tejo em
Zorita/Guadalajara)... Ora, nesta época , já se perdera, evidentemente, a memória real da
origem daquele nome - oscilando este entre Seterigo, Sesserigo e Senterigo (de
onde também senterinis)...
Desta designação é fácil
perceber a apropriação árabe: Xanterine, nome que vão dar ao castelo
fortificado, que os mouros estabelecem no alto do monte. Por sua vez, os
cristãos vindos para sul a quando do avanço de Afonso III de Leão - que elimina
Xurumbaqui, o rei dos montes litorais entre Coimbra, Leiria e Santarém em 876 -
ou aqueles que vieram com o rei Ordonho no ano 950, julgam-se perante uma tal
Sancta Herene (por semelhança de pronúncia com Xanterine)... Aliás esta
designação não se fixa, oscilando também, perdida a sua razão “árabe”, dando
Eirea, Eyria, Hirena, Iria...é que ao serem introduzidos no português de época
os termos árabes eles sofrem adaptações fonéticas e ajustamentos ou deturpações
mesmo quanto á forma(morfologia)...
5º sábio- eu acho que esta confusão é alimentada também
pelos arquivos das Astúrias (sede dos cristãos refugiados, aquando da ofensiva
árabe) propagando-se aos séculos posteriores: É o caso alí relatado da
existência no norte hispânico, de dois calendários religiosos, já no sec. XI :
o do mosteiro de Silos que regista em 1052 uma Stª Hirene de Tessalónica
e o da Catedral de Leão que regista diversamente uma S. Eirene de Scalabicastro
- mas no ano de 1067 - ou seja depois do
cisma de 1054 entre o patriarca Cerulário do Oriente e o Papa Leão IX a
Ocidente (os quais se excomungam mútuamente, a propósito de questões litúrgicas
como o uso do pão ázimo na missa e quanto à concepção do Espírito Santo,
questão do Filioque como ficou conhecida...
Provávelmente ambos os registos
daquela Santa, são apenas memórias desfocadas de uma outra realidade - mais
espiritual, do que física - que teve seu desenvolvimento peculiar, tal como a invenção de Compostela...
Concretizando: sabe-se que em
meados do séc. VI, a arquidiocese de Braga, abrangendo toda a galiza, foi
ocupada por S. Martinho de Dume - o
conversor dos Suevos Arianos e impulsionador do 1º Concilio de Braga - o qual
estudou em Constantinopla (na época, capital do império cristão) , aí recebendo
toda a influência doutrinal que possuia. S.Martinho traduz nomeadamente os
Apoftegmas dos padres do Deserto...
A Oriente vivia-se então a
idade de ouro de Justiniano (527-565). Depois de dois séculos de crise, a
preocupação central deste imperador bizantino era a harmonia entre o Império e
a Igreja, a paz e prosperidade tão necessários à alma e corpo dos súbditos...
Assim, durante o seu reinado,
Justiniano edifica ou reedifica duas
igrejas próximas - que podemos considerar pois irmãs no espaço e no tempo -
consagrando uma à Divina Sabedoria (em grego : Aya Sophia) e outra dedicada à Paz Divina (em
grego: Aya Yrine).
A primeira será a igreja do
Patriarca e glória da arquitectura, com sua fabulosa cúpula, como que suspensa
do céu, em seus mosaicos”ismit”, pintados a verde e azul, qual Jardim do Eden
A outra igreja (S. Herene ou
Iria) dedicada pois à Paz Divina, é reconstruida nesta época pela segunda vez
após incêndio, sobre um antigo templo pagão. O seu estilo arquitetónico é o de
uma comunhão entre a basílica do ocidente e a rotunda oriental, com suas duas
cúpulas na ampla nave central e abóbodas várias nas naves laterais, cujas
paredes são rasgadas por 3 niveis de janelas de arco ao romano, que assim
iluminam profusamente os belos frescos interiores , com motivos celestes.
Esta igreja, onde em 6ª feira
Santa se depositava a Sagrada Lança ,,
servira já transi tóriamente, no século anterior, como catedral, no reinado de
Teodoro II.
As 2 igrejas tinham nesse sec VI uma cleresia composta por quase 500
elementos entre sacerdotes,
diaconos,subdiaconos, leitores, cantores
e outros!...
(igreja de St. Eyrine ou da Paz Divina em Istambul, frente a S.Sophia ou Divina Sabedoria)
6º sábio- Ambas as igrejas são portanto de invocação
simbólica e não a santas reais, prática aliás, comum na igreja oriental e
deveras visível nas companheiras “gregas” de S. Iria nos calendários litúrgicos
da época medieval: Stª. Pitis (em grego: Fé). Elpis (Esperança), Ágape
(Caridade), Chionia (Pureza), Sofia (Sabedoria) - tais nomes de santas, não são mais do que alegorias de virtudes
cristãs teologais e morais ou frutos e dons do Espiríto Santo,
respectivamente!..(cf: P. Miguel de Oliveira,64
e Mario Girardi,83).
Circa do ano 1000 foram personalizadas no 1º teatro edificante
cristão conhecido,obra da monja alemã Roswita de Gandsheim,que nos apresenta a
mãe Sabedoria e suas 3 filhas virgens e noivas de Cristo,mortas á espada a
mando do imperador Adriano... assim, popularizando a velha carta de S.Jeronimo
ás mães, exortando-as a serem sogras de Deus (sic)!.. entregando-lhe suas
filhas, pois “é melhor casarem com um Rei,do que com um simples soldado”.. .Assim, com tantas sogras...Deus tornou-se
definitivamente invisível! ... ( gargalhada geral dos Sábios)...
7º sábio- Bem, no séc. XII, já
há muito se esquecera o grego em Hespanha, o que explica a tal memória
desfocada de que falámos atrás... Ainda recordando a época visigótica: a partir
do 3º concílio de Toledo (589) a corte
Goda adopta na peninsula ibérica, hábitos bizantinos, depois de sua conversão
pelo também frequentador de Bizâncio, São
Leandro (irmão de S. Isidro de Sevilha) e o próprio rei Recesvinto - a
partir do início do seu reinado - vai aprofundar essa ligação ao oriente. São
fruto dessa época - tanto a sul (Mértola) como a norte (Lamego) as cruzes
gregas que aparecem nas sepulturas cristãs lusitanas.
Adoptamos também o uso , generalizado
na liturgia oriental, dos dias da “féria” e não astrológicos. E certamente ,
não será por acaso, que a maior parte dos nomes de santos das Beiras e Minho,
são santos orientais. Aliás a 2ª metade do Seiscentos é marcada pela chegada do
1º papa grego-Sergio- e pela introdução de uma série de cultos orientais a
ocidente...E posteriormente acontece até que vários santos com actas apócrifas
de martírio passam a receber veneração litúrgica...
Na continuidade, também o rito
moçárabe se inspirará no sírio-grego e bizantino...cultuando o seu santoral
específico : Sª Columba, S.Cucufate,
S.Mamede e Sª Iria...
Mais, da própria Scalabis,
partirá cerca do ano 570, ainda jovem, um tal João Biclarense para Constantinopla,onde estuda durante 7 anos letras
latinas e gregas. (compõe uma crónica sobre o reinado de Justino a oriente e
Leogivildo a ocidente) e donde regressa em 578, mas sendo perseguido por
Leogivildo, no periodo da disputa religiosa
com Hermenegildo, afasta-se para Gerona, onde funda um mosteiro,com sua
Regra, segundo a crónica de S. Isidro. Participa no concílio de Toledo de 597.
O que exemplifica uma certa ligação
espiritual na época entre Santarém e Constantinopla... (tal como no século
anterior da Galécia partira em peregrinação ao oriente -Jerusalém e
Constantinopla- uma certa Etérea...com possível ramo familiar em Antioquia, de
onde João colige noticias de um curator
,o patrício Etéreo circa 560,em rebelião com Justino)... Mas há mais: tal como
Avitus em Braga anteriormente, também agora Libério - em 580 - oficial ao
serviço de Bizâncio na Lusitânia e na Bética, para aqui traz naturalmente
alguns dos seus cultos particulares... Essa
influência é directa ,até ao ano 621.
E o 8º e último Sábio concluiu:
- É possível, portanto, que em Santarém
se tenha dado ao longo dos séculos uma comunhão reforçante e acidental dos dois
factos: o nome do presor godo, adulterado pelos árabes e a memória cristã de um
culto oriental, já esquecido o seu significado grego...
Clarificando a lenda: por
detrás da chegada, pela águas, à ribeira de Scalabis de “Santa Eyria”,
esconde-se a chegada do Godo Suneric ao areal, alí fazendo presúria, para além
da ligação manifesta do burgo santareno ao Oriente: enquanto grande porto fluvial do mundo com seu deposito
de mercancias.
Coincidência significativa : na
Grecia existe uma ilha chamada Santorini
e um santuario chamado de Iria em Naxos, lugar de cultos vários , desde a época
micénica...
...Aqui, no conventus
scalabitano, do tal rei Recesvinto resta-nos como sinal confirmado, uma moeda
de seu reinado cunhada em Hispalis/Sevilha e encontrada no caminho entre Tomar
e Torres Novas ...
(Continua)
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