15.6.17

A propósito da procissão do Corpo de Deus...




DIACRONIA PROCESSIONAL 

A princípio era o Bem e o Mal. Na natureza sucediam-se os dias fastos e os nefastos em número semelhante...
Face às variações astrais , acidentes climáticos, morte e visão duma terra que floresce e gera frutos, os homens - esses Adões desterrados na floresta Primordial - invocam a magia da natura que os rodeia . A dança, o corpo, o tan-tan, o grito, são o primeiro diálogo com o sobrenatural, exercício expiatório ou prece de uma benesse...
E a festa repete-se circunstancial por todas as latitudes, sedimentando-se temporalmente os cultos sob as mais desvairadas formas.
No antigo Egipto, Isis, a deusa dos mil nomes, a que concedia a cevada e o trigo, era cultuada através de uma procissão de crentes: na frente ia o chantre com o simbolo da música, um livro de hinos teológicos e outro de regras de conduta; seguia-o o horóscopo com o símbolo da astrologia - um ramo de palmeiro- e os quatro livros herméticos sobre os astros; após o que vinha o Escriba sagrado, com plumas na cabeça, na mão a régua ,o tinteiro e a cana para a escrita hieroglífica; depois o Estolista com a vara da justiça e a taça das libações;finalmente o profeta com sua túnica, em cujas dobras leva a Urna sagrada exposta. Acompanhando os ministros da classe superior, seguem-se outras classes de fieis, como os pastophoros ou curandeiros e os que levam os PÃES...
A propósito dos pães em procissão - é bom lembrar - que a região de SELLIUM se integrava no tempo dos romanos em plena rota isíaca para Emerita, onde descansavam as legiões; há referências, pelo menos em dois lugares, nessa via a aras votivas dedicadas pelas sacerdotizas romanas de Isis : em Tucei e Cabrei (vide Hubner, CIL II ) .
EIS AS RAIZES MAIS ANTIGAS DA FESTA DOS TABULEIROS NA REGIÃO DE TOMAR

Entretanto na Síria tem lugar os chamados Prantos de Thamuzi ou choro ritual pela morte do deus da vegetação a quando das ceifas...
Nos primeiros séculos da nossa era encontramo-los na Andaluzia (mais tarde travestidos na Semana Santa sevilhana!) trazidos pelos mercadores e mareantes fenícios - os cananeus biblicos - cujos cultos se mamtêm inalteráveis durante milénios...
Da mesma área, também os adeptos de Atis-Cibele importam para o império romano o costume de imponentes procissões aquando dos equinócios de Março, onde se transporta um pinheiro-simbolo da divindade-envolvido em fitas de cor roxa; no seu séquito, as mulheres choram : "héu, héu, Salvator noster"...tal como mais tarde nos rituais da Paixão...
Já na era cristã,a 25 de Abril em Roma,pratica-se a "ambarvalia": procissão através dos campos para pedir boas colheitas;o cortejo em fila , devido à estreiteza dos caminhos,seguindo desde o Corso até ao bosque sagrado dos arredores,onde se sacrificam as vísceras de um animal.
No seculo IV o papa Libério pensou adaptar esta procissão aos tempos cristãos,mas mantendo o itinerário...Mas é só no século IX,com Leão III , que se establece com vinculo certo na semana de Pentecostes, a chamada penitencial ou rogativa,onde o rei descalço e o povo participam, percorrendo os campos durante 3 dias, com a cabeça coberta de cinzas.
Na Ligúria, leva-se na procissão o Draco: estandarte que tinha pintado um dragão,simbolo do diabo.Durante os três dias, o Draco tomava várias posições segundo uma simbologia determinada. Assim no primeiro dia, ia á frente da procissão, de cauda erecta - estandarte vertical - representando Lucifer, o principio do Mal, arrogante...
No segundo dia,quando as orações começam a fazer efeito, o Draco passava para o meio da procissão e "baixa a bola" ou seja a cauda(!)-estandarte inclinado. Finalmente no 3ºdia o Draco passava para o fim da procissão e ia de cauda plana, rastejante - estandarte deitado - significando que já fora vencido...
Na passagem do milénio a febre processional intensifica-se perante o terror do desconhecido. A própria missa é uma sucessão de procissões: ao introito a dos clerigos pelo deambulatório,ao Ofertório a dos crentes,a comunhão até ao altar, acompanhadas do cãntico dos salmos bíblicos.
A sociedade medieval torna-se uma civilização visual: nas cerimónias solenes desfilam o cruciferário,o evangeliário, os candelários,o turibulário,etc...
Toda a procissão é como uma viagem primordial até ao Deus Criador de todas as cousas visíveis e invisíveis.Surgem relatos de viagens fantásticas nesse sentido, como o da navegação irlandesa do abade S.Brandão e seus monges,em demanda da ilha mística,errando durante sete tormentosos anos,pelas águas da iniciação e da purgação ou a provação regeneradora até atingir a Terra da Promessa.
Também a lenda da viagem de Túndulo,em visão ou sonho,percorrendo os infernais subterrâneos onde se torturam os condenados às trevas,ao fogo e ao gelo; depois a ansiedade do Purgatório e por fim as delicias do banquete celeste...
Imitando a viagem biblica do Rei David, a quando do transporte da Arca da Aliança, as peregrinações tornam-se a mais perfeita forma de ascese dos tempos da cavalaria. Viagens de penitência,purificação e gozo,até junto dos tumulos e reliquias dos Lugares Santos: Compostela, Roma e Jerusalém.Aqui se demanda a Vera Cruz e a Arca.
Para os vilões ou peonagem que não podiam ir tão longe, resta-lhes por exemplo a chamada Légua de Jerusalém, na catedral de Chartres (sec.XIII), labirinto de 12 m de diametro e 200 m de comprimento, que os fieis percorrem até atingir o centro, significante da Jerusalém Celeste...
Ou os monges que não saiem de seu mosteiro,viajando processionalmente pela quadratura de seus claustros,e retornando ciclicamente ao mesmo lugar,orando e meditando,na demanda da Revelação dos mistérios de Deus.Assim por exemplo, em dia de aniversário de defuntos, no convento de Thomar: depois da missa,se ordena a procissão desde a Charola à Claustra do Cemitério,indo diante da cruz o acólito com a água benta para aspergir as sepulturas,o celebrante com capa preta e o diácono a sua esquerda com o hissope.Percorrendo várias estações ou paragens- onde haverá preces e cânticos de responso- voltarão à igreja, aonde porão a cruz à cabeça do túmulo simbólico, ali feito com um pano de cruz de tela no chão ,cercado de círios; lançando-lhe o capelão por fim a benção.
...Entretanto já o Pontifical dos Santos substituira o velho calendário lunar/agrícola: em Portugal,caso único na Europa,os próprios dias da semana dedicados às divindades astrais(dia de lunes,martes,etc),se convertera numa série ordenada de dias de féria liturgica romana(2ªfeira,3ª feira,etc)...
O próprio municipio de Lisboa establece em 1365 que dai em diante e"em este termo non se cantem Janeiras nem Maias nem a outro mês do ano"...As maias,eram ritos naturalistas,com flores no inicio do mês de Maio,suspendendo-se grinaldas nas ombreiras das portas-saudando a Primavera florida- como se praticava no tempo de frei Luis de Sousa na ermida da Senhora da Escada ao Rossio em Lisboa, justificando-se nessa altura tal ,como sendo comemoração de quando N.Senhora fugia para o Egipto e fora denunciada por uma flor aos seus perseguidores( em Minde diz-se que foi o barulho de uma vagem de tremoço pisada) vindo então um arcanjo a pôr flores em cada porta,confundindo o inimigo...
Mas todavia, as práticas ligadas às anteriores crenças mantêm-se na memória do povo : acredita-se nos encantamentos e agoiros, rogam-se pragas...os santos óleos e a hóstia usam-se para praticar sortilégios ( como no caso do milagre de Santarém, do sec XIII).
Acontece uma fusão de crenças e prácticas,uma assimilação e ritualização, de que a própria Igreja aproveita a forma tentando injectar novos conteúdos.



A Procissão do Corpo de Deus

O séc. XIII é a centúria de todos os cultos: celebra-se a Paixão de Cristo, a Virgem, o Espirito Santo, o Corpo de Deus em exposição; com parte religiosa e profana.
Na festa da Hóstia, a parte profana está a cargo das corporações de mesteres, cada uma com seu tema, de obrigatória presença, mestres e aprendizes,com seu pendão e figurações.Conforme sua ordem de importancia social, assim temos á frente os hortelães com seu andor representando uma almoinha aos ombros,depois os vendedores de pregão com suas danças judengas e mouriscas ao som de gaitas,adufes e pandeiros.
Seguem-se os almocreves,moleiros e peliteiros com seus pendões. O Dragão sarapintado movido por 20 aprendizes de sapateiro enfiados no seu bojo e á sua frente a dama "nua" (pouco vestida) provocando o draco em danças extácticas... acompanhada de muitos mouros "falando desonestidades"!
Uma vintena de alfaiates transporta a Serpe fabricada de madeira e vestida por eles.Depois os chamados homens de armas ou seja : ferreiros, seleiros, barbeiros, latoeiros, rodeando S.Jorge no andor lutando contra a Serpe.
Carpinteiros e calafates arrastando galés; oleiros trazendo acorrentados 2 diabos fazendo momices e trejeitos.
Enfim, profanidades que tanto escandalizam D.Sebastião, como maravilham Filipe II anos mais tarde...
A fechar os mesteres mais nobres: ourives, moedeiros, tabeliães, escrivães e boticários.
Demarcando posição : o alferes e o almotacé com suas bandeiras, seguindo-se os cavaleiros das Ordens militares e a multidão de monges de várias cores. A seguir a corte e o rei rodeando a hóstia elevada nas mãos do bispo sob pálio...rematando o místico espectáculo.
No sec.XVIII retiraram-se as figurações e as folias,salvou--se o S.Jorge a cavalo...a procissão ficou mais eclesiástica e menos popular, mas mais luxuosa.
À frente as bandeiras dos oficios da casa dos Vinte e Quatro com seus patronos,S.Jorge armado de sua lança, capacete de plumas coberto de diamantes em cavalo branco no meio de outros cavaleiros, trombetas a cavalo. Segue-se o homem de ferro com sua armadura, o condestável, ladeado de pagens,vestido a ouro e pedras preciosas.Depois as confrarias de opas vermelhas, milhares de frades brancos, negros e castanhos, empunhando tochas, centos de cavaleiros das ordens militares de Cristo e de Santiago, o clero e os cantores de pastoral. O cortejo real e penitencial; cónegos e turibulários; finalmente o S.Sacramento em relicário sob pálio... a multidão de povo atrás respeitosa.

No final do seculo passado, o S.Jorge (presente desde Aljubarrota) em luta com o Draco, acabou tanbém de ser irradiado da Procissão lisboeta...hoje mantem-se apenas em regiões como Penafiel e Monção no Minho onde tem grande assistencia a luta entre o Bem e o Mal no terreiro que só termina quando o S.Jorge a cavalo trespassa com a lança os costados do monstro de cabeça articulada e homens dentro...

(Extracto do artigo  – Diacronia Processional – in Boletim Cultural da Camara Municipal de Tomar, nº21 de Out.1997), 



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