7.4.12

Diacronia Processional



 A princípio era o Bem e o Mal. Na natureza sucediam-se os dias fastos e os nefastos em número semelhante...


Face às variações astrais , acidentes climáticos, morte e visão duma terra que floresce e gera frutos, os homens - esses Adões desterrados na floresta Primordial - invocam a magia da natura que os rodeia . A dança, o corpo, o tan-tan, o grito, são o primeiro diálogo com o sobrenatural, exercício expiatório ou prece de uma benesse...

E a festa repete-se circunstancial por todas as latitudes, sedimentando-se temporalmente os cultos sob as mais desvairadas formas rituais.

                         
No antigo Egipto, Isis, a deusa dos mil nomes, a que concedia a cevada e o trigo, era cultuada através de uma procissão de crentes: na frente ia o chantre com o simbolo da música, um livro de hinos teológicos e outro de regras de conduta; seguia-o o horóscopo com o símbolo da astrologia - um ramo de palmeiro- e os quatro livros herméticos sobre os astros; após o que vinha o Escriba sagrado, com plumas na cabeça, na mão a régua ,o tinteiro e a cana para a escrita hieroglífica; depois o Estolista com a vara da justiça e a taça das libações;finalmente o profeta com sua túnica, em cujas dobras leva a Urna sagrada exposta. Acompanhando os ministros da classe superior, seguem-se outras classes de fieis, como os pastophoros ou curandeiros e os que levam os pães.

A propósito dos pães em procissão - é bom lembrar - que a região de Selium (hoje Tomar) se integrava no tempo dos romanos em plena rota isíaca para Emerita, onde descansavam as legiões; há referências, pelo menos em dois lugares, nessa via a aras votivas dedicadas pelas sacerdotizas romanas de Isis : em Tucei e Cabrei (vide Hubner, CIL II ) .

Entretanto na antiga Síria tinham lugar os chamados Prantos de Thamuzi ou choro ritual pela morte do deus da vegetação a quando das ceifas...

Nos primeiros séculos da nossa era encontramo-los na Andaluzia (mais tarde travestidos na Semana Santa sevilhana!) trazidos pelos mercadores e mareantes fenícios - os cananeus biblicos - cujos cultos se mamtêm inalteráveis durante milénios...

Da mesma área, também os adeptos de Atis-Cibele importam para o império romano o costume de imponentes procissões aquando dos equinócios de Março, onde se transporta um pinheiro-simbolo da divindade-envolvido em fitas de cor roxa; no seu séquito, as mulheres choram : "héu, héu, Salvator noster"...tal como mais tarde nos rituais da Paixão, se lamentarão os monges bernardos...

Já na era cristã,a 25 de Abril em Roma,pratica-se a "ambarvalia": procissão através dos campos para pedir boas colheitas;o cortejo em fila , devido à estreiteza dos caminhos,seguindo desde o Corso até ao bosque sagrado dos arredores,onde se sacrificam as vísceras de um animal.

No seculo IV o papa Libério pensou adaptar esta procissão aos tempos cristãos,mas mantendo o itinerário...Mas é só no século IX,com Leão III , que se establece com vinculo certo na semana de Pentecostes, a chamada penitencial ou rogativa,onde o rei descalço e o povo participam, percorrendo os campos durante 3 dias, com a cabeça coberta de cinzas.

Na Ligúria, leva-se na procissão o Draco: estandarte que tinha pintado um dragão,simbolo do diabo.Durante os três dias, o Draco tomava várias posições segundo uma simbologia determinada. Assim no primeiro dia, ia á frente da procissão, de cauda erecta - estandarte vertical - representando Lucifer, o principio do Mal, arrogante...

No segundo dia,quando as orações começam a fazer efeito, o Draco passava para o meio da procissão e "baixa a bola" ou seja a cauda(!)-estandarte inclinado. Finalmente no 3ºdia o Draco passava para o fim da procissão e ia de cauda plana, rastejante - estandarte deitado - significando que já fora vencido...

Na passagem do milénio a febre processional intensifica-se perante o terror do desconhecido. A própria missa é uma sucessão de procissões: ao introito a dos clerigos pelo deambulatório,ao Ofertório a dos crentes,a comunhão até ao altar, acompanhadas do cãntico dos salmos bíblicos.

A sociedade medieval torna-se uma civilização visual: nas cerimónias solenes desfilam o cruciferário,o evangeliário, os candelários,o turibulário,etc...

Toda a procissão é como uma viagem primordial até ao Deus Criador de todas as cousas visíveis e invisíveis.Surgem relatos de viagens fantásticas nesse sentido, como o da navegação irlandesa do abade S.Brandão e seus monges,em demanda da ilha mística,errando durante sete tormentosos anos,pelas águas da iniciação e da purgação ou a provação regeneradora até atingir a Terra da Promessa.

Também a lenda da viagem de Túndulo,em visão ou sonho,percorrendo os infernais subterrâneos onde se torturam os condenados às trevas,ao fogo e ao gelo; depois a ansiedade do Purgatório e por fim as delicias do banquete celeste...

Imitando a viagem biblica do Rei David, a quando do transporte da Arca da Aliança, as peregrinações tornam-se a mais perfeita forma de ascese dos tempos da cavalaria. Viagens de penitência,purificação e gozo,até junto dos tumulos e reliquias dos Lugares Santos: Compostela, Roma e Jerusalém.Aqui se demanda a Vera Cruz e a Arca.

Para os vilões ou peonagem que não podiam ir tão longe, resta-lhes por exemplo a chamada Légua de Jerusalém, na catedral de Chartres (sec.XIII), labirinto de 12 m de diametro e 200 m de comprimento, que os fieis percorrem até atingir o centro, significante da Jerusalém Celeste...

Ou os monges que não saiem de seu mosteiro,viajando processionalmente pela quadratura de seus claustros,e retornando ciclicamente ao mesmo lugar,orando e meditando,na demanda da Revelação dos mistérios de Deus.Assim por exemplo, em dia de aniversário de defuntos, no convento de Thomar: depois da missa,se ordena a procissão desde a Charola à Claustra do Cemitério,indo diante da cruz o acólito com a água benta para aspergir as sepulturas,o celebrante com capa preta e o diácono a sua esquerda com o hissope.Percorrendo várias estações ou paragens- onde haverá preces e cânticos de responso- voltarão à igreja, aonde porão a cruz à cabeça do túmulo simbólico, ali feito com um pano de cruz de tela no chão ,cercado de círios; lançando-lhe o capelão por fim a benção.
                  
...Entretanto já o Pontifical dos Santos substituira o velho calendário lunar/agrícola: em Portugal,caso único na Europa,os próprios dias da semana dedicados às divindades astrais(dia de lunes,martes,etc),se convertera numa série ordenada de dias de féria liturgica romana(2ªfeira,3ª feira,etc)...

O próprio municipio de Lisboa establece em 1365 que dai em diante e"em este termo non se cantem Janeiras nem Maias nem a outro mês do ano"...As maias,eram ritos naturalistas,com flores no inicio do mês de Maio,suspendendo-se grinaldas nas ombreiras das portas-saudando a Primavera florida- como se praticava no tempo de frei Luis de Sousa na ermida da Senhora da Escada ao Rossio em Lisboa, justificando-se nessa altura tal ,como sendo comemoração de quando N.Senhora fugia para o Egipto e fora denunciada por uma flor aos seus perseguidores , vindo então um arcanjo a pôr flores em cada porta,confundindo o inimigo...

Mas todavia, as práticas ligadas às anteriores crenças mantêm-se na memória do povo : acredita-se nos encantamentos e agoiros, rogam-se pragas...os santos óleos e a hóstia usam-se para praticar sortilégios ( como no caso do milagre de Santarém, do sec XIII).

Acontece uma fusão de crenças e prácticas,uma assimilação e ritualização, de que a própria Igreja aproveita a forma tentando injectar novos conteúdos.

                   
Cem Soldos(concelho de Tomar) : A festa das Cruzes e seus simbolismos .

Na manhã de domingo de Pascoa, começam a chegar os jovens ao largo da igreja,com suas canas enfeitadas com cruzes de flores de giesta,artisticamente fabricadas.

Entram na igreja individualmente e no altar fazem canticos. O padre não intervem.

Depois saiem processionalmente: à frente uma fila de jovens com campainhas agitadas com frenesi e o cruciferário.Atrás multidão de cruzes floridas.Marcham em passo de corrida pelas ruas da povoação.Passada uma hora regressam ao largo e dirigindo-se aos degraus da igreja ali partem as cruzes contra a pedra,Morreu o cristo-Homem,viva o cristo-Deus.Ressureição.

Esta festa das cruzes tem tradições na região de Leiria,onde é costume espetar as cruzes ornamentadas de flores nos campos de cultivo contra os maleficios no agro.Também em Barcelos, no Minho,sincretica com o maio florido,se festeja a cruz.A 3 de Maio se faz a procissão da invençãõ(achamento) da S.tª Cruz e há desfile de romeiros com suas rusgas e tocatas. No chão constrioem-se tapetes de pétalas de flores naturais: ofertas do povo.Durante 3 dias cinco homens confecionam a escada da Paixão e o Coração de N.Sª das Dores.

Mas para além das cruzes enfeitadas comuns , há dois aspectos em Cem Soldos que interessa salientar,os quais estão ligados à temática dos enterros reais e liturgicos dos seculos XV e XVI .Assim uma vez mais em retorno,vejamos o caso dos tocadores de campana e a questão da quebra das cruzes.Primeiramente o relato do funeral do rei Carlos VI de França em Notre Dame(1422) segundo G.Duby :" Foi levado o corpo,como se leva o corpo de N.Senhor,na festa do Santo Salvador;por cima do despojo real um dossel de ouro levado por quatro ou seis parentes,30 servidores levam o corpo aos ombros,repousando no leito com o rosto descoberto; à frente as Ordens e os cânticos;havia duas filas à frente de pobres servidores,vestindo de preto,chorando mui alrto e levando tochas e 18 pregoeiros do corpoi; também 24 cruzes de religião,que precediam os tocadores de campainhas".

Aqui temos partindo da identificação que é feita entre o rei e o divino(comum á epoca)o espelho das procissões da Paixão: os confrades levando a imagem aos ombros,a presença dos prantos ou carpideiras,e no que diz respeito a Cem Soldos,a ultima linha é sucinta:os pregoeiros (aqui os que gritam:O Senhor ressuscitou-Aleluia!),as vinte e tal cruzes (aqui as dezenas de cruzes enfeitadas) e os tocadores de campainha(aqui também presentes).

Vejamos agora a questão das cruzes à luz do regimento português de 1502 acerca do levantamento dos reis.
                 
Quando o velho rei morria,um arauto gritava:Morreu o rei,viva o Rei!:Desciam-se as bandeiras e os sinos tangiam"como carpideiras de bronze aiando desesperos",,,adiante menestréis tocando trombetas.Vão da porta da Sé á porta da Alfandega,seguem ao Rossio e depois ao castelo de S.Jorge.No dia seguinte: Os procuradores dos mesteres e todos os outros atrás referidos, saiem do minicipio levando à frente um dos procuradores da cidade arrastando uma bandeira negra,Atrás o cortejo em duas filas vestindo luto e ao centro os juizes,segurando cada um,o seu escudo negro.Marcham até à Sé,anunciando a morte do rei.

Á porta da Sé, ouvia-se um estalido seco da madeira pintada de negro: assim se quebravam os escudos do rei! Regressando à liturgia e constatando que a cruz é o estandarte,simbolo,marca e escudo de Cristo,é evidente a analogia e o simbolismo da quebra das cruzes em Cem Soldos...Aqui se quebra o escudo do Cristo morto,e libertam-se as flores do Cristo Vivo,ou dito de outra forma: da morte nasce a vida, tal como afirma para os iniciados, a rosa nascendo da cruz , á entrada da Almedina, no castelo Templário de Tomar.

Ora Cem Soldos fica a 7 km de Tomar e era uma comenda templária. E torna-se assim bastante elucidativo quanto a uma explicação sobre a acusação filipina feita aos templários sobre os impropérios á cruz...afinal está aqui uma memoria/residuo arqueoritual visível de que tal não passava de um momento ritual na admissão/iniciação do monge templario, que se passava geralmente por alturas da Páscoa. Dúvidas?.. Vão ver com vossos próprios olhos ! É mais um momento/local a não perder na região de Tomar...

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