1.3.16

Naquele dia, em que o vento frio de Março...


No princípio do ano da Encarnação de 1160 (ao tempo o ano iniciava-se por alturas da Páscoa / Março) e decorrendo o seu terceiro ano como Mestre, Gualdim Pais “ guardando o corpo em vida de graça e permanente nas boas obras” decide começar a construção do castelo de Thomar, escolhido o alto do monte com maior declive para sul, frente ao rio.


A planta da fortaleza inspira-se no modelo justiniano, que Gualdim observara na Terra Santa, composto por três cercas envolventes de muralhas (perimetro externo 320m,flanqueadas por cerca de uma vintena de torrões e cubelos ) com sua alcáçova na cerca mais interna a norte, de formato pentagonal irregular, onde se situa a Torre de Menagem quadrangular,adossada á muralha,em posição de canto- uma novidade gualdínica em relação a castelos roqueiros anteriores - com seus três pisos . Será o Paço do Mestre, com sua porta resguardada ao nivel do 1º andar. Outro elemento novo: o Alambor ou escarpamento de pedras, defendendo a base das muralhas e torres contra ataques de sapa e minagens a toda a volta do castelo.
O conjunto, organizado como réplica da ordem cósmica, construido a partir do modelo do firmamento : imagem especular da constelação de Bootes , o Pastor celeste guardando a alcáçova pentagona, sobre cuja torre de menagem, vigia a estrela Arcturo…o lugar real, morada do Mestre iniciado dos cavaleiros.
Aliter, simbólicamente ...a planta das muralhas , perfigura a quilha da barca salomónica ou da barca solar egípcia, sinal da viagem transformadora ,com inicio na Porta do Sol...tal como se vê no céu egípcio dos Templos, os deuses vogarem em barcas entre as estrelas do firmamento...vede o desenho dos arquitectos e tirai vossas conclusões...

Na 2ª cerca, encostado à cortina ocidental de muralhas, debruçada sobre ravina de 15 metros, fica o oratório circular dos cavaleiros: construção octogonal de altas colunas com seus capiteis figurativos, arcaria apontada e baldaquino, memória de Jerusalém, tal como outras sedes do Templo em Paris e Londres, iniciadas na mesma década (estas, sobre terrenos pantanosos e planos,no limite das cidades) .Têm em comum um diametro de cerca de 20 metros...
A 3ª cerca é reservada a habitação de colonos, desde sudoeste, em plano descendente segundo o desnivelamento do lugar.
Por sua vez, do outro lado do rio, junto às ruinas do velho mosteiro de Selio - aproveitando as “marcas sagradas” daquele chão – decide Gualdim reconstruir convento e igreja dedicada a S. Maria de Anunciação, que irá servir de sede-catedral à Ordem (contemporânea da “Notre Dame” de Paris).
Para o conjunto importante destas obras, ordena o Mestre Gualdim a vinda de obreiros da Galiza e de outras partes. Quiçá a colaboração de artífices como mestre Roberto, que andando próximo na construção da Sé de Coimbra, se deslocava amiúde a Lisboa - onde se construia a sua Sé, também - passando por aqui, trajecto habitual, com seus três mancebos e mulas de apoio. E aqui pousando da viagem, era natural que desse os seus conselhos para estas obras.
Sabe-se também, que trabalhavam na vizinha Coimbra, além de vários mestres francos(da região de Auvergne) , mouros de Toledo vindos das obras na Catedral de Tuy (artifices moçárabes, segundo o livro Preto). Porventura também disponível o nosso único arquitecto românico conhecido, que há cerca de uma década (em 52) terminara a 1ª sede dos francos bernardos em Tarouca, de seu nome João Froilaz.
Aqui trabalham mais de uma centena de homens, entre colonos povoadores e artífices contratados, cuja origem diversa se reconhece pelos sinais deixados nos monumentos. Assim, secções de muros em longa fileira “acertada” de pedra, pavimentos de tijolo disposto em espinha e a calçada de seixo rolado enquadrada por tijolos verticais,a qual vem do lado de Africa desde o acesso exterior à porta da Almedina até ao recinto dos Cavaleiros, são marcas de pedreiros mouriscos. Porém em seu percurso, o arco pleno de largas aduelas da entrada naquele recinto , tal como o 2º arco a meio caminho, de passagem sob a muralha meio soterrada e alinhado com a calçada , mostram ser puro românico nortenho .
Ora tal alinhamento construtivo, aliado ao facto de nunca se ter encontrado por aqui a marca moura característica- o capitel tipo Córdoba,presente em Santarém- faz-nos pensar que calçada e arcos são ambos coevos da época gualdínica (que foi aliás longa) embora feitos por artífices diferentes , em fases diferentes (como no caso dos 2 níveis da Charola). Para além de que o “saber construtivo” perdura para lá da condição dos homens ( de livres a subjugados) ...é afinal o tempo longo da história...a continuidade e interpenetração dos estilos. Efectivamente é um dado assente, que na construção da Reconquista, pedreiros mouros fabricaram, até sec XV, castelos e até capelas que ... nunca foram árabes!
Assim, a Ordem de Aviz teve um mestre a fazer castelo chamado Mouro Calvo e que aqui também teria familiares no termo: pois há memória de documentos de herança ou erdamentos na época, em nome de Calvo ,para lá das Algarvias...
Quanto à existência de cerâmica e de silos, estes também são de longa duração e utilização, atravessando épocas em continuidade, apresentando larga diacronia (seria bom uma análise de eventuais sementes encontradas, pelo método do carbono )...
Mas o arco apontado na Porta do Sol é típico dos bernardos de Cister , região de influência arquitetónica dos francos borguinhões (como na igreja de S. Lázaro em Autun, de 1132). Tal como a barbacã em rampa curva e estreita (acesso em cotovelo), representa a técnica franca do “caminho em fila”, obrigando o eventual inimigo a prolongada exposição do seu flanco direito à chuva de setas vindas das ameias...
Por outro, a alta e estreita arcaria da Rotunda octogonal é marca orientalizante, a que talvez não seja estranha a presença em Coimbra, segundo uma tradição, de um artífice grego de seu nome Ptolomeu
(Este Ptolomeu é citado , em anotação , na obra "Portas e Arcos de Coimbra" do Gen.Martins de Carvalho,Ed.Biblioteca Municipal,Coimbra,1942.Na Charola é visivel que toda a concepção espacial,das colunas às frestas por cima dos arcos,releva da inspiração oriental-bizantina. Em Atenas,vede o exemplo da igreja da Virgem,coeva da Charola,de planta centrada e cuja fachada ostenta por cima da porta,em relevo na pedra,as cruzes associadas às Ordens do Templo e de Cristo!)




Naquele dia, em que o vento frio de Março, açoutava muros e homens, há um afã de todos nós na fabricação do castelo.
Uma pequena multidão de jovens e velhos puxam por cordas ou com as mãos , carros de cal e areia, braças de pedra calcárea abundante,. Encosta acima, animando-se uns aos outros no esforço assim como às bestas (mulos) que os acompanham. Mancebos esforçados cantando a compasso, enquanto assentam alicerces em declive a sul; dúzias de troncos marcados, escolhidos por medida pelos carpinteiros que ordenámos os tomassem da mata densa de Ceras, para madeiramento das casas; e logo anotados pelo monge encarregue do registo de despesas.
No chão amontoa-se a areia trazida do rio para argamassa, enquanto os canteiros lavram pacientemente a pedra junto à alcáçova, sob a direcção do mestre de pedraria,com seu bastão...
Monges aos pares, segurando padiolas cheias de pedra arrancada às ruinas romanas e godas (que fornecem muitas carradas) fazem o seu transporte alegremente, entoando salmos e hinos à Virgem…E chegando ao cimo o mestre construtor escolhe as quadradas e brancas, regeitando as quebradas e escuras...Enquanto eu rezo os Padres nossos das Horas.


Ao fim de dois anos e meio, os panos das muralhas estão levantados em singelo sem adarves, com a urgência devida à ofensiva almôada, nova dinastia árabe de invasores que acaba de chegar. Assim à dextra de quem entra na Porta do Sol, fica o Reduto dos Cavaleiros e a Alcáçova senhorial com sua cisterna abobodada subterrânea em ângulo, com capacidade de cerca de 360,000m3 de água recebida das chuvas e vinda por calhas de pedra da Riba Fria.
E sobre a cisterna , levantarão , a cozinha e refeitório, edificadas em vasta sala rectangular, com sua coluna central, donde partem em cruz quatro arcos plenos em tijolo, a oriente.
E a poente da alcáçova, outras câmaras, onde habitarão oficiais do paço.
No extremo norte da Alcáçova ergue-se já altaneira a cerca de 20m, a Torre de Menagem, dominando o vale.; onde - buscando talvez a sombra protectora de Roma - se colocam à vista, em suas paredes, algumas pedras significativas, trazidas das ruínas além do rio.



Aquelas inscrições lapidares e dedicatórias que ali se podem ler (da família Sabínola na face sul e da família de Valério Máximo na face a nascente) são antes de tudo e , porque só naquela torre principal colocadas, o respeito e o culto dedicado à velha arte romana de construção, neste século XII, em que se procura construir à romana: um tempo de arte românica...
Admitindo que possa ter havido ali , mais antigamente , algum posto de observação, comum em pontos altos, por certo seria de importãncia reduzida (não nenhuma fortaleza equiparada!), devido a não merecer qualquer referência na pormenorizada carta real de doação do território de Ceras...e num caso destes, os castelos seriam sempre mencionados, porque propriedade real mais importante.
O certo é que, não se pode dizer que a torre de Menagem tenha por base algum assentamento romano (basta olhar em um dos cantos para aquela inscrição pétrea invertida,denunciando uma posição não original) e portanto, a presença de material de aproveitamento não significa (nem era forçoso) que provenha daquele lugar elevado!
- O mesmo se poderá dizer quanto ás placas visigóticas, visíveis nas paredes da mesma Torre , embora haja quem pense ter havido um deslocamento da vera paróquia de Sellium ,para o cimo deste monte (por causa das invasões bárbaras) mas então o que terão lá ficado a fazer, do outro lado do rio, os mortos (enterramentos) encontrados para esse mesmo período e até á Reconquista ?!... aliás, se o abade do Selho oficiasse cá em cima (assim como Castinaldo) a própria localização-memória do sítio e caminho ou direcção em que se move Eyrea e/ou suas “tias” (em direcção a S.Pedro Fins) deixaria de fazer sentido, internamente : na construção/invenção da própria lenda!
-Junto á muralha norte , houve sem dúvida o Paço antigo do casto Henrique, navegador, mas não o paço do Castinaldo governador!...se bem que por baixo soterrados, se encontrem, pavimento argamassado e muros de pedra aparelhada , não alinhados com as paredes conventuais ,mas ali deu-se sem dúvida um deslocamento tardio sim, da própria muralha gualdínica: nesse lugar e adossado á muralha original de Gualdim , ficava um dos torreões quadrangulares ou cubelos com largura de 2.5 varas, flanqueando a muralha ali onde fazia leve esquina , erguido sobre um monte de” boa piçarra “ (como era costume noutros castelos de época, fazer esse aproveitamento da elevação da Natura) ... aliás,se se conserva a memória escrita deste monte natural de boa piçarra, qualquer fabrica pré-ualdínica a existir ali, o teria destruído e portanto converteria aquela memória posterior em algo impossível…(restam os modos de fabrico diversos...para mãos diversas, nos 44 anos que o novo burgo cristão intra-muros demorou a construir, segundo as crónicas... aliás a existencia de uma mudança ao nivel da técnica utilizada náo implica necessariamente a presença de uma ruptura politico-cultural!).
-Quanto a artefactos ali encontrados, soterrados, eles “ocorrem a um nível arqueológico do sec XII” segundo comentário de M.J.Barroca in “Pera Guerreiar” …pelo que não podemos recuar meia dúzia de séculos na datação- dos achados …a menos que a estratigrafia seja de interpretação oracular…(sabendo contudo que até o carbono 14 pode sofrer dessa maleita, face à análise de materiais orgânicos, como na questão da “patine” acerca da datação do Sudario de Turim, mas essa é outra estória)…a questão central é a atribuição de estimativas relativas e não absolutas de datação…


(Ruinas da igreja da Almedina ,chamada de S.Maria do Castelo)



Eu, modesto porteiro abro-vos agora as portas desta Jerusalém terrestre para que vejam alguma cousa do bem e do belo que ali há… Irmãos esta casa é uma fortificação de Deus sitiada pelo inimigo, que tem para sua defesa as muralhas da continência e as torres da paciência. E tal como nos ensinou S.Bernardo, foi primeiramente construído em nossos corações ...(Relevando pois o seu papel de construtores enquanto cavalaria iniciática)...
E como se diz no seu sermão XXVI : aqui estamos tal como os guerreiros sob a tenda de campanha, tratando de conquistar o céu por meio da violência”!...
Para a esquerda de quem entra à Porta do Sol, fica o bairro ou almedina de artesãos e escudeiros e outros serventes de nossa Ordem, com sua porta de arcopleno entre duas fortes quadrelas de vigia, que permitem bem flanquear e dar um abraço de morte a atacantes. Sobre a porta e do lado de fora, inscrevemos na pedra a data do ínício da construção (1160) e uma cruz com uma rosa ao centro, marca do Templo ( tal como em Santarém), simbolizando uma nova vida, regeneração, ressureição em Cristo, para aqueles que penetram intra-muros... deixando a insegurança e o mal do mundo exterior.
E lateralmente ao nosso sinal – a cruz redonda- colocámos 2 simbolos...que são uma mensagem espiritual para descobrirdes...(Potencialmente signos astrológicos ou divinos-(o alfa e o ómega.)..Na porta sul da igreja da comenda de Fonte Arcada podeis ver ali a cruz inscrita dentro de um circulo, ladeada pelo sol e pela lua, conjugando poderes apotropaicos e escatológicos.)....
E ao centro do castelo, ao fundo resguardada, a Domus Dei , no cimo de um monte, o nooso oratório : oito paredes de arcaria em rotunda, significando a eternidade, o infinito Deus, sem começo nem fim, como o círculo. Construìdo à imagem da capela real de Carlos Magno em Aix-la –Chapelle, o chefe do Sacro-Império e vero propagador do canto gregoriano, da teoria musical dos 8 modos ou escalas diatonais, conhecida entre os bizantinos , como “ Octoechos”...
Domus divina...com 8 aberturas. Octógono de S.Ambrosio - lugar onde se recupera a salvação… número das bem aventuranças para os místicos, as 8 direcções da Beatitude ... octuplo caminho esclarecido de Brama ou número da justiça Pitagorica…
Octógono : pedra preciosa que irradia a suprema Luz…núcleo do Ser...onde habita o Soberano-Rei… mediador entre o quadrado da terra e o circulo celeste… simbolo de regeneração, de passagem do efémero ao eterno… Símbolo da Jerusalém celeste ou Empireo - a mansão dos bem aventurados - 10º circulo superior de Dante…
Edificio dos edifícios: centro da cristandade , à imagem de Jerusalém, centro do mundo desenhado e considerado nos portulanos…
Memória do Santo Sepulcro, na sua tradição de túmulo-relicário (martyrium) donde emanam forças sobrenaturais - como aquela mão direita (a guia), elevada, de S. Gregório, (o doutor capadócio) que aqui colocámos ao centro, tal como a Arca da Aliança ao centro do templo de Salomão, detendo os inimigos que hão-de vir, dando protecção contra os infieis...

Quanto aos capiteis figurativos em forma de cesto invertido, com imposta (à maneira bizantina) que encimam as colunas do oratório : aquela “disformidade formosa” nas palavras de S. Bernardo - cópia paciente a cinzel de bestiários, ou comentário apocalíptico - um quadrúpede com cauda de peixe ou os ferozes leões, atacando o profeta Daniel, servem acima de tudo para meditação dos fraters , no seu caminho de iniciação, na sua sacra--via. Adões regenerados sob as colunas do Templo, aos pés da cruz. Qual o vero significado ou essência deles , explicaremos mais tarde, quando estiverdes preparados...
Por agora ficai a saber que quanto à forma são modelos que, tais como os de Rates ou Rio Mau, nossos irmãos conversos trouxeram de Compostela: leões monocéfalos ou o par de aves imóveis nos ângulos de um capitel, assim como aqueles outros capiteis expondo o território vegetal, também pertencem à escola de arte galaico-coimbrã.

E feito assim o alta-mor ou “centro” térreo da igreja com seu deambulatório de paredes duplas e maciços contrafortes – deixámos a construção de sua cúpula para mais tarde (como os adarves nos muros...). Quanto a seu portal em platibanda com suas arcadas sobre colunas ornadas são cópia da fachada ocidental da Sé de Coimbra…


NOTA FINAL : Este texto é o capitulo XV do livro O Mestre... editado pela Ésquilo em Março 2011.
Abaixo,  tb o rosto da 1ª versão da Pró-biografia do mestre(Livro das horas...) publicada em março 1997 no Boletim cultural nº 20 da Camara Municipal de  Tomar .



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