29.3.14

DIDACHÉ - Iniciação do cavaleiro Templário






Onde se trata dos conteúdos que nos propomos  apresentar e representar no castelo templário de Tomar . Primeiramente, trata-se de um texto feito de raiz para este espaço e adequado à sua especificidade . Não fala de algo importado da vida de qualquer outro mosteiro, sim do que se passava intra-muros à luz do que  conhecemos...


PrólogoNaquele tempo, dionisino, existia um Portugal verdadeiro e fundamental, caracterizado pela cooperação e pela fraternidade…hoje uma alma em dormência , nas palavras de Agostinho da Silva.

Efectivamente, a atrofia de memoria cultural, e o endeusamento do efémero, é um traço dominante da 2ª metade do seculo XX . A grande maioria de nós já não é capaz de identificar as passagens centrais da Biblia ou dos clássicos, que foram o alfabeto de nossas leis e instituições...(G. Steiner)
A espessura da memória só será preservada, se dermos importância acrescida ao tempo histórico e á reflexão sobre o mistério das coisas e da vida.... ligando o conhecimento á compreensão deste nosso mundo : este , o vero culto da Sabedoria ...afinal a Idade Media foi o início da Europa de hoje ! (H. Godinho-Un .Nova) .

Urge preservar as raízes de nossa identidade e para tal , a melhor defesa (da tradição , do tempo mítico e do espaço sagrado) é torná-las vivas, fazer a recriação, actualização ,desses valores perenes e do património… (J. Anes- REAA)
Com a perda do sentido da memoria da humanidade, o vazio entrou em nossas vidas e a calma e a luz são-nos quase alheias. Tabucchi, considera como constante premonitoria do ultimo seculo,o dessasossego(mal estar) diagnosticado por F.Pessoa ..desilusão de viver, falta de prosperidade e paz...a inquietação que nos assola.

O reencontro com essa idade de Ouro, é a nossa demanda, aqui e agora, nesta cidade irénica ou da paz espiritual...através de uma acção cultural, entendida como aquele “misterioso elemento que despertando , permite abrir momentâneamente a nossa percepção...possibilitando o encontro com essa verdade , que nós sozinhos dificilmente poderiamos alcançar (Peter Brook) ...ou nas palavras de outro autor cénico : por uma animação teatral “enquanto forma de meditação , que alargará o aparelho sensivel do homem, à visão dos espaços secretos “ (Wilson, 92).

O texto propõe uma construção para a realidade da época templária, desenvolvendo-se como um vero “Jeu” entre o que permanece oculto (enigmas , lacunas documentais) e que é visível ,mostrado, revelado (Phainomenon.) numa aproximação coeva , tanto quanto possível á distância de uma geração ( de 30 anos) no que respeita a nomes, actos ou pensamentos...

Composição fabricada a partir (como soe dizer-se ) das mais desvairadas fontes documentais e justificando-se no pensamento de Poincaré quer afirmou que “as combinações mais ferteis são formadas de elementos retirados dos dominios mais afastados”…
Texto mìstico de prosa e algum verso, espelhando uma época de transição, á imagem da literatura de chantefable como “Aucassin e Nicolette” composto no sec XIII… com partes para serem contadas e outras cantadas…


A acção ritual acontece circa 1286- no castelo templário de Tomar, onde o Mestre da Ordem, D.João Fernandes, inicia um sobrinho em Capitulo, segundo um testemunho, relatado nas inquirições de D.Dinis de 1317.
Evocação histórica, balanceada entre o rigor historico e a necessidade de agradar a um vasto publico, buscando divulgar e explicar , sem se tornar uma tese ou missa pesada para os convivas... mas sempre tendo em conta que o ritual tem um presença considerável na vida social da época : um mundo de gestos, mais do que palavras escritas, como diz o historiador J. LeGoff…onde as figuras serão reanimadas pelos ritos ... como na velha crença egípcia.

A organização do tempo ficcional (contido aristotélicamente em uma única revolução solar) acompanha a estruturação do espaço : 4 actos - cada um em sua mansão...Trata-se de uma encenação “ao medievo” tipo auto da Criação- que se desenrola no Terreiro do castelo ,como Iniciação através dos 4 elementos : Terra- Água–Ar–Fogo,á semelhança do que está figurado nos capiteis da Charola e conforme á doutrina Hermética:“a imagem do que está em cima:é o que está em baixo
Teatro de mistérios- dos menores aos maiores- como uma sucessão de frescos giottescos, desde as antigas Iniciações até aos dias do Templo; representação didáctica em defesa e louvor da Milícia Templaria ...
Efectivamente, baseados na tradição universal ,mas tambem na local e alicerçados na autenticidade da Regra primitiva descrita por Regine Pernoud, tentamos esclarecer as 3 principais acusações feitas aos templarios no seu tempo: o beijo na boca, a vituperação da cruz e a adoração da cabeça "bafometica"... afinal : um ósculo cortez, a evocação da Paixão e o culto das reliquias na época... respectivamente!

Evocando velhos e novos ritos templarios, buscamos tambem encontrar o tronco comum a todas as iniciações (básicamente 3 estados : purificação, comunicação de segredos e visão plena da Realidade ) de forma que seja útil a todas as crenças e filosofias....
Cenográficamente naturalista- já que é o proprio monumento real que nos envolve... com suas muralhas, portas, arcos, frestas, capiteis, abóbada, escadas,arvore ,tanque... em sua função original... mas que não só os mostra, também os anima- dando-lhe vida, alma- expôe emoções/vibrações de época...uma autêntica atmosfera do lugar, tanto no espiritual como no temporal , acercando-nos da vida do sec XIII.
As cenas são como capiteis animados, estátuas que se movem, que exprimem o ser com o gesto e o rosto, duma forma naturalista... como Daniel que sorri e mexe o pé, no Portico da Gloria compostelano!

O objectivo é mostrar o processo da Iniciação, a atitude do candidato ao Templo a caminho da perfeição, através de quadros significativos : a fera que confronta o homem junto á arvore terrestre , a dissolução da forma material no nivel liquido, o ser alado nas escadas , o fogo espiritual na Charola...

Usa visões simbólicas para exteriorizar a angústia e o êxtase : o dragão... a hóstia de luz ; nesse sentido uma representação expressionista : expressa estados de alma, mostra a realidade interna do personagem , a passagem para a luz do candidato, a sua evolução espiritual...através da via probatica e do sacrificio...”no estado de degenerescência, depois da queda, é pela pele (pelas provas,dor espiritual,sacrificio corporal) que se hão-de clarificar/iluminar os espiritos... diz Artaud.
Expôe o conflito da alma, arena de luta, na visão da monja Hildegarda de Bingen
( sec XII) , entre o bem e o mal - numa linguagem visual ,comum a hoje e ontem…

No amplo Terreiro,o registo interpretativo é, como não podia deixar de ser, expressionista,na voz vibrante e no gesto largo; já no interior da Charola,adquire um tom salmódico e comedido,próprio ao cerimonial que aí decorre...
Acção dramática , onde há um percurso iniciatico ,uma progressão/subida ao Terreiro, como Purgatório/ purificação do cavaleiro, na via do espiritual : á imagem do caminho fragoso e difícil de Dante …mas no fim, alegre e deleitoso…como dirá o nosso Camões, ( Lusíadas,9.90) - ao atingir a platónica Planicie da Verdade ou paraíso terreal na Charola, pequeno planalto coroando o Monte sacro , onde reside a cavalaria mística e hiperbórea (a norte do castelo).

Segundo Ricardo de S.Vitor, a ascensão da montanha é o conhecimento de si e o que se passa no cimo, conduz ao conhecimento do Divino.
Percurso alquímico através do qual o homem transmuta sua natureza inferior de chumbo, elevando-se ao estado purificado do Ouro.
Aqui tudo obedece a um simbolismo : se as cores e vestes indicam uma posição social, os objectos ,esses, não são vulgares instrumentos, são meios de fazer pensar e sentir, estimulando a imaginação dos convivas, que meditam e percorrem o caminho da Demanda, ao encontro do Espirito da Luz .
Ritual simbólico com o objectivo de obter uma vida anímica superior, onde , em contacto físico com local marcado pelo transcendente, se recebem ensinamentos e experimentam certas emoções ou estados de alma.
Em suma: uma viagem /peregrinação de aperfeiçoamento e conhecimento : há algo mais , para além do visível , a procurar !
- Tudo em ambiente mágico e real - onde a qualidade é dada pelo rigor á época e seu pensamento...incluindo uma certa " libertas goliardica" , anti-naturalista, para acrescentar o gozo anímico dos participantes…onde se recupera a comunhão do teatro medieval... onde todo são envolvidos e participam em união.

Um teatro de identificação : onde o monge se identifica com Cristo sofredor, percorrendo arfante com a cruz a via sacra ou sendo estigmatizado como S.Francisco; o iniciado se identifica com o carrasco pecador, batendo ,injuriando , negando a Cristo...e chorando de arrependimento...e o público que se identifica com a crença : apedrejando ao vivo os carrascos/saiões na Semana Santa da Valhadolid medieva ...ou vibrando em enthousiasmus (o divino em si) aqui, como na Grecia antiga ... em roda da Arvore simbólica e real , meditando em movimento.

Teatro de exaltação, revelação, decifração e metamorfose... onde os convivas obtêm respostas para si mesmo,renovam suas forças interiores,sua vontade,superam-se a si proprios...tornam-se Outro! ... porque aqui divertir é ver de outra forma, uma nova visão transformadora, elevando a sua consciência do mundo em que vivem e da vida ...favorecendo o Espirito da fraternidade , a que apelava J. Rousseau in carta a D’Alembert (1758) : “ convertam os espectadores em espectáculo, façam-nos actores, façam com que cada um se veja e goste de si proprio, para que desse modo se sintam mais unidos”… Em suma, um teatro edificante, proporcionando uma mudança de atitudes, do individualismo/egoísmo á solidariedade!
À imagem- actualizante- do mistério dominical, a prática deste ritual fará coincidir o presente da acção e o presente da representação ( re-presentar é tornar a ser presente) ; desta guisa , todos serão iniciados, em algum grau, tal como o cavaleiro-iniciado... A prática gestual dos conceitos essenciais, colocá-los-á no coração do misterio imemorial. Na via da Demanda da Perfeição, "em sonho e realidade, que faz a vitoria da condição humana"...segundo o discurso magistral de M.Oliveira,cineasta.