21.10.14

Afinal quais as origens e o que representa Santa Iria ?



Vamos traçar um quadro das varias origens possiveis da estoria de Santa Iria nos tempos medievos ate chegar ao ultimo seculo em cujo dealbar apareceu, em pleno Chiado de Lisboa  como uma santa modernizada , e primeiro caso conhecido na igreja, a publicitar um sabonete...como cuidados a ter com a pele ! Isto ha cem anos , na vanguarda da moda!
Este texto e’ constituido por excertos do livro pro-biografico de Gualdim Pais “ O Mestre Templario na fundacao de Portugal” e toma neste assunto a forma de um debate entre sabios...Devido a sua extensao , sera dividido em 3 partes, a sair sucessivamente ...

1 – Reflexao Santarena : A proposito da conquista de Santarem
...Na Ribeira, de ruas estreitas e sinuosas, que o rio amiude invade, fundam os do Templo a igreja de Santiago, onde colocam capelão da  Ordem.
Também  pertencendo  à colegiada de Sta. Maria da Alcaçova, ali se edifica outra capela dedicada a Sta. Iria, sendo seu 1º clérigo: Garcia Mendes. Segundo uma tradição, no areal defronte aparecera um túmulo de mármore com o corpo desta Santa (assediada por um monge e degolada a mando do filho dum conde godo,no ano 653)  e que logo fôra coberto pelas águas do Tejo; mas cuja memória e culto se tinham perpetuado em Scalabis, chegando a mudar-se o nome deste loco para Santarém (de Stª Iria) no tempo do rei Godo Recesvinto, que ali fizera erguer um basílica,junto ao rio...
                                                        (Intermezzo )
A  Assembleia dos 8  Sábios  reunidos na Torre ,  debatem entretanto , esta bela estória digna da Legenda  Aurea...
Diz o 1º sábio – O que sabemos deste  rei - Recesvinto – é que iniciou o seu governo, por coincidência, em Outubro deste ano de 653, por morte de seu pai em 30 de Setembro ... E caso a norma, quanto à coroação entre os reis godos seja um intervalo de três semanas - como aconteceu a seu sucessor - então Recesvinto deve ter sido coroado à volta de 20 de Outubro, o que não deixa de ser uma coincidência singular com a data em que se comemora Stª Iria...
Com Recesvinto atingiu-se o apogeu da Hespanha Goda, celebrando-se ainda nesse ano o 8º concílio de Toledo - na nova igreja de S. Leocádia - onde se fez a revisão do código  visigótico e se tratou dos costumes do clero,em degradação. É também o ano em que se reduzem os limites da Galécia ao rio Douro, afastando-a pois da diocese de Coimbra - a qual vai até Sélio ou Selium (Tomar), uma das suas sete paróquias. Posteriormente  a divisio de Wamba(672/680) confirma-o.
Na época daquele  rei convertido e piedoso - ofertante à Igreja de uma rica coroa votiva em ouro e pedras preciosas - realizaram-se ainda mais dois concílios: o 9º e o 10º (neste participou S.Frutuoso de Braga-em 656) onde se continuou a tratar de matéria disciplinar,com incidência na vida monástica .
Tal como Clovis o rei franco merovingio, convertido ao catolicismo,escolheu como seu atributo a flor de iris ou lirio (abundante nas margens do rio LYS do mesmo nome,junto a Poitiers onde vencera os  arianos em 507.).. também agora provávelmente à sua imagem (principal força  político-religiosa  a Ocidente) tal  fizera este  rei  godo  cristão trinitario  e campeão dos concilios ( 3 em seu reinado) ...Significativo: ..a flor do lirio  representa-se com 3 petalas e um caule–significando a Trindade e os 3 Ps: Pureza,Perfeição e Pharol ou luz do mundo...... Eis assim a  santa Iris de Clovis (o luminar e modelo da igreja da época)...assinalada junto ao rio agora godo-cristão...-...pura,perfeita e luminosa... afinal nem Salomão na sua magnificência se vestia assim..como os lirios .(.dizem as Escrituras )...

2º sábio- Ilustre  colega, ...realmente a haver uma  mártir, à época, o estranho é que tanto o bispo de Coimbra, Sisiberto, como o próprio S.Frutuoso, bispo de Braga, não se lhe referem em nenhum escrito ; embora este último, praticasse anualmente a reunião abacial, e portanto estivesse bem informado...(O que não obsta a que para a mesma época o bispo Ildefonso  refira até os pretensos milagres de Donato,o coevo monge transfuga! Com maioria de razão alguém falaria na época de uma mártir que ia dar nome a uma cidade!)...Ora três séculos depois (sec. X), o calendário místico de Córdoba (expoente da convivência cultural e religiosa, arabe e latina, na Peninsula), onde se anotam as festas dos santos cristãos, continua omisso neste facto. O que a comunidade paleo-cristã e moçárabe venera são antigos mártires da época romana e não goda (!)...como S.Vicente e S.Brás.

3ºsábio- Para nós,se há algo que é “decapitado” efectivamente naquele ano (653) é a paz ou estado de graça entre o Papa e o Imperador; concretamente 653 é a data insólita da prisão, julgamento e exílio(na Crimeia onde morre)  de um Papa de Roma - Martinho I - por um Imperador cristão de Constantinopola - Constante II ...é um  tempo de ruptura,face ao simbolo de Atanasio: “Perfectus Deus,perfectus homo”.
Martinho I acabava de condenar - no sinodo de Latrão-  a doutrina do monotelismo (que afirma ter cristo duas naturezas, uma humana e outra divina, mas uma só vontade) estando em vigor - por parte de Constante II - a proibição de qualquer discussão no império acerca das naturezas e atributos de Cristo, questão que dividia gravemente os cristãos ... e não se pode esquecer que nessa mesma altura, nascia também um novo e perigoso concorrente da Bíblia: O Corão que começava a unificar sólidamente as fileiras dos seus vizinhos infiéis a Oriente, passada à escrita a doutrina oral dos surates (versículos)...enquanto Jerusalém –a Amada- caia em  mãos infiéis...e era governada pelos Omíadas...

4º sábio- O que temos como certo é que, durante o sec. V com a quebra da estrutura civil romana e o desaparecimento da sua organização militar, ao longo nomeadamente, da estrada romana Scalabis - Conimbriga - aliada aos confrontos bárbaros na zona - estas duas cidades se reduzem lentamente a meros aldeamentos de ínfima importância, apenas pontos de referência. E tal como na vizinhança de Conimbriga, nasceu Coimbra assim também - e a geografia árabe refere-o - ao lado da Scalabis romana vai surgindo uma nova povoação crescente de importância, na Ribeira, junto ao Tejo, área de grande fertilidade.
Iacube - ainda no século XII - fará essa distinção, entre os dois locos ...
Ora, segundo a crónica do bispo Idácio de Chaves, esta região é tomada por Sunerico ao serviço dos visigodos, no séc V.(460)
E falando da  origem do nome deste loco- É muito possível que, tal como na Hespanha, a Andaluzia (passando por Vandalícia) procede dos Vândalos que a tomaram aos romanos, assim também a região de que estamos a tratar, tomasse o nome do seu presor - Sunerico - o que na evolução da linguagem terá dado posteriormente a Senerigo  de que nos falam os relatos da conquista em 1147 por Afonso Henriques.
(Ainda no século seguinte constatamos o godo Leogivildo,fundando cidades: Victoriam e Recópolis-esta em homenagem ao filho-junto ao Tejo em Zorita/Guadalajara)... Ora, nesta época , já  se perdera, evidentemente, a memória real da origem daquele nome - oscilando este entre Seterigo, Sesserigo e Senterigo (de onde também senterinis)...
Desta designação é fácil perceber a apropriação árabe: Xanterine, nome que vão dar ao castelo fortificado, que os mouros estabelecem no alto do monte. Por sua vez, os cristãos vindos para sul a quando do avanço de Afonso III de Leão - que elimina Xurumbaqui, o rei dos montes litorais entre Coimbra, Leiria e Santarém em 876 - ou aqueles que vieram com o rei Ordonho no ano 950, julgam-se perante uma tal Sancta Herene (por semelhança de pronúncia com Xanterine)... Aliás esta designação não se fixa, oscilando também, perdida a sua razão “árabe”, dando Eirea, Eyria, Hirena, Iria...é que ao serem introduzidos no português de época os termos árabes eles sofrem adaptações fonéticas e ajustamentos ou deturpações mesmo quanto á forma(morfologia)...

5º sábio- eu  acho que esta confusão é alimentada também pelos arquivos das Astúrias (sede dos cristãos refugiados, aquando da ofensiva árabe) propagando-se aos séculos posteriores: É o caso alí relatado da existência no norte hispânico, de dois calendários religiosos, já no sec. XI : o do mosteiro de Silos que regista em 1052 uma Stª Hirene de Tessalónica e o da Catedral de Leão que regista diversamente uma S. Eirene de Scalabicastro - mas no ano de 1067 - ou seja depois do  cisma de 1054 entre o patriarca Cerulário do Oriente e o Papa Leão IX a Ocidente (os quais se excomungam mútuamente, a propósito de questões litúrgicas como o uso do pão ázimo na missa e quanto à concepção do Espírito Santo, questão do Filioque como ficou conhecida...
Provávelmente ambos os registos daquela Santa, são apenas memórias desfocadas de uma outra realidade - mais espiritual, do que física - que teve seu desenvolvimento peculiar, tal  como a invenção de Compostela...
Concretizando: sabe-se que em meados do séc. VI, a arquidiocese de Braga, abrangendo toda a galiza, foi ocupada  por S. Martinho de Dume - o conversor dos Suevos Arianos e impulsionador do 1º Concilio de Braga - o qual estudou em Constantinopla (na época, capital do império cristão) , aí recebendo toda a influência doutrinal que possuia. S.Martinho traduz nomeadamente os Apoftegmas dos padres do Deserto...
A Oriente vivia-se então a idade de ouro de Justiniano (527-565). Depois de dois séculos de crise, a preocupação central deste imperador bizantino era a harmonia entre o Império e a Igreja, a paz e prosperidade tão necessários à alma e corpo dos súbditos...
Assim, durante o seu reinado, Justiniano edifica ou  reedifica duas igrejas próximas - que podemos considerar pois irmãs no espaço e no tempo - consagrando uma à Divina Sabedoria (em grego : Aya  Sophia) e outra dedicada à Paz Divina (em grego: Aya  Yrine).
A primeira será a igreja do Patriarca e glória da arquitectura, com sua fabulosa cúpula, como que suspensa do céu, em seus mosaicos”ismit”, pintados a verde e azul, qual Jardim do Eden
A outra igreja (S. Herene ou Iria) dedicada pois à Paz Divina, é reconstruida nesta época pela segunda vez após incêndio, sobre um antigo templo pagão. O seu estilo arquitetónico é o de uma comunhão entre a basílica do ocidente e a rotunda oriental, com suas duas cúpulas na ampla nave central e abóbodas várias nas naves laterais, cujas paredes são rasgadas por 3 niveis de janelas de arco ao romano, que assim iluminam profusamente os belos frescos interiores , com motivos celestes.
Esta igreja, onde em 6ª feira Santa  se depositava a Sagrada Lança ,, servira já transi tóriamente, no século anterior, como catedral, no reinado de Teodoro II.
As 2 igrejas tinham nesse  sec VI uma cleresia composta por quase 500 elementos  entre sacerdotes, diaconos,subdiaconos, leitores, cantores  e outros!...
 
(igreja de St. Eyrine ou da Paz Divina em Istambul, frente a S.Sophia ou Divina Sabedoria)

6º sábio-  Ambas as igrejas são portanto de invocação simbólica e não a santas reais, prática aliás, comum na igreja oriental e deveras visível nas companheiras “gregas” de S. Iria nos calendários litúrgicos da época medieval: Stª. Pitis (em grego: Fé). Elpis (Esperança), Ágape (Caridade), Chionia (Pureza), Sofia (Sabedoria) - tais nomes de santas,  não são mais do que alegorias de virtudes cristãs teologais e morais ou frutos e dons do Espiríto Santo, respectivamente!..(cf: P. Miguel de Oliveira,64  e  Mario Girardi,83). 
Circa do ano 1000 foram  personalizadas no 1º teatro edificante cristão conhecido,obra da monja alemã Roswita de Gandsheim,que nos apresenta a mãe Sabedoria e suas 3 filhas virgens e noivas de Cristo,mortas á espada a mando do imperador Adriano... assim, popularizando a velha carta de S.Jeronimo ás mães, exortando-as  a serem  sogras de Deus (sic)!.. entregando-lhe suas filhas, pois “é melhor casarem com um Rei,do que com um simples soldado”.. .Assim, com tantas sogras...Deus tornou-se definitivamente invisível! ... ( gargalhada geral dos Sábios)...

7º sábio- Bem, no séc. XII, já há muito se esquecera o grego em Hespanha, o que explica a tal memória desfocada de que falámos atrás... Ainda recordando a época visigótica: a partir do 3º concílio de Toledo (589)  a corte Goda adopta na peninsula ibérica, hábitos bizantinos, depois de sua conversão pelo também frequentador de Bizâncio, São  Leandro (irmão de S. Isidro de Sevilha) e o próprio rei Recesvinto - a partir do início do seu reinado - vai aprofundar essa ligação ao oriente. São fruto dessa época - tanto a sul (Mértola) como a norte (Lamego) as cruzes gregas que aparecem nas sepulturas cristãs lusitanas.
Adoptamos também o uso , generalizado na liturgia oriental, dos dias da “féria” e não astrológicos. E certamente , não será por acaso, que a maior parte dos nomes de santos das Beiras e Minho, são santos orientais. Aliás a 2ª metade do Seiscentos é marcada pela chegada do 1º papa grego-Sergio- e pela introdução de uma série de cultos orientais a ocidente...E posteriormente acontece até que vários santos com actas apócrifas de martírio passam a receber veneração litúrgica...
Na continuidade, também o rito moçárabe se inspirará no sírio-grego e bizantino...cultuando o seu santoral específico :  Sª Columba, S.Cucufate, S.Mamede e Sª Iria...
Mais, da própria Scalabis, partirá cerca do ano 570, ainda jovem, um tal João Biclarense para Constantinopla,onde estuda durante 7 anos letras latinas e gregas. (compõe uma crónica sobre o reinado de Justino a oriente e Leogivildo a ocidente) e donde regressa em 578, mas sendo perseguido por Leogivildo, no periodo da disputa religiosa  com Hermenegildo, afasta-se para Gerona, onde funda um mosteiro,com sua Regra, segundo a crónica de S. Isidro. Participa no concílio de Toledo de 597. O que exemplifica  uma certa ligação espiritual na época entre Santarém e Constantinopla... (tal como no século anterior da Galécia partira em peregrinação ao oriente -Jerusalém e Constantinopla- uma certa Etérea...com possível ramo familiar em Antioquia, de onde João colige noticias de um curator ,o patrício Etéreo circa 560,em rebelião com Justino)... Mas há mais: tal como Avitus em Braga anteriormente, também agora Libério - em 580 - oficial ao serviço de Bizâncio na Lusitânia e na Bética, para aqui traz naturalmente alguns dos seus cultos particulares... Essa  influência é directa ,até ao ano 621.

E o 8º e último Sábio concluiu: -  É possível, portanto, que em Santarém se tenha dado ao longo dos séculos uma comunhão reforçante e acidental dos dois factos: o nome do presor godo, adulterado pelos árabes e a memória cristã de um culto oriental, já esquecido o seu significado grego...
Clarificando a lenda: por detrás da chegada, pela águas, à ribeira de Scalabis de “Santa Eyria”, esconde-se a chegada do Godo Suneric ao areal, alí fazendo presúria, para além da ligação manifesta do burgo santareno ao Oriente: enquanto  grande porto fluvial do mundo com seu  deposito  de mercancias.
Coincidência significativa : na Grecia existe uma ilha chamada  Santorini e um santuario chamado de Iria em Naxos, lugar de cultos vários , desde a época micénica...
...Aqui, no conventus scalabitano, do tal rei Recesvinto resta-nos como sinal confirmado, uma moeda de seu reinado cunhada em Hispalis/Sevilha e encontrada no caminho entre Tomar e Torres Novas ...

                                               (Continua)


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