Onde se trata dos conteúdos que nos propomos apresentar e representar no castelo templário de Tomar . Primeiramente, trata-se de um texto feito de raiz para este espaço e adequado à sua especificidade . Não fala de algo importado da vida de qualquer outro mosteiro, sim do que se passava intra-muros à luz do que conhecemos...
PrólogoNaquele
tempo, dionisino,
existia um Portugal verdadeiro e fundamental, caracterizado pela
cooperação e pela fraternidade…hoje uma alma em dormência , nas
palavras de Agostinho da Silva.
Efectivamente,
a atrofia de memoria cultural, e o endeusamento do efémero, é um
traço dominante da 2ª metade do seculo XX . A grande maioria de nós
já não é capaz de identificar as passagens centrais da Biblia ou
dos clássicos, que foram o alfabeto de nossas leis e
instituições...(G. Steiner)
A
espessura da memória só será preservada, se dermos importância
acrescida ao tempo histórico e á reflexão sobre o mistério das
coisas e da vida.... ligando o conhecimento á compreensão deste
nosso mundo : este , o vero culto da Sabedoria ...afinal a Idade
Media foi o início da Europa de hoje ! (H. Godinho-Un .Nova) .
Urge
preservar as raízes de nossa identidade e para tal , a melhor
defesa (da tradição , do tempo mítico e do espaço sagrado) é
torná-las vivas, fazer a recriação, actualização ,desses valores
perenes e do património… (J. Anes- REAA)
Com
a perda do sentido da memoria da humanidade, o vazio entrou em
nossas vidas e a calma e a luz são-nos quase alheias. Tabucchi,
considera como constante premonitoria do ultimo seculo,o
dessasossego(mal estar) diagnosticado por F.Pessoa ..desilusão de
viver, falta de prosperidade e paz...a inquietação que nos assola.
O
reencontro com essa idade de Ouro, é a nossa demanda, aqui e agora,
nesta cidade irénica ou da paz espiritual...através de uma acção
cultural, entendida como aquele “misterioso elemento que
despertando , permite abrir momentâneamente a nossa
percepção...possibilitando o encontro com essa verdade , que nós
sozinhos dificilmente poderiamos alcançar (Peter Brook) ...ou nas
palavras de outro autor cénico : por uma animação teatral
“enquanto forma de meditação , que alargará o aparelho sensivel
do homem, à visão dos espaços secretos “ (Wilson, 92).
O
texto propõe uma construção para a realidade da época templária,
desenvolvendo-se como um vero “Jeu” entre o que permanece
oculto (enigmas , lacunas documentais) e que é visível ,mostrado,
revelado (Phainomenon.) numa aproximação coeva , tanto quanto
possível á distância de uma geração ( de 30 anos) no que
respeita a nomes, actos ou pensamentos...
Composição
fabricada a partir (como soe dizer-se ) das mais desvairadas fontes
documentais e justificando-se no pensamento de Poincaré quer
afirmou que “as combinações mais ferteis são formadas de
elementos retirados dos dominios mais afastados”…
Texto mìstico de prosa e
algum verso, espelhando uma época de transição, á imagem da
literatura de chantefable como “Aucassin e Nicolette” composto
no sec XIII… com partes para serem contadas e outras cantadas…
A
acção ritual acontece circa 1286- no castelo templário de
Tomar, onde o Mestre da Ordem, D.João Fernandes, inicia um sobrinho
em Capitulo, segundo um testemunho, relatado nas inquirições de
D.Dinis de 1317.
Evocação
histórica, balanceada entre o rigor historico e a necessidade de
agradar a um vasto publico, buscando divulgar e explicar , sem se
tornar uma tese ou missa pesada para os convivas... mas sempre tendo
em conta que o ritual tem um presença considerável na vida social
da época : um mundo de gestos, mais do que palavras escritas, como
diz o historiador J. LeGoff…onde as figuras serão reanimadas
pelos ritos ... como na velha crença egípcia.
A
organização do tempo ficcional (contido aristotélicamente em uma
única revolução solar) acompanha a estruturação do espaço :
4 actos - cada um em sua mansão...Trata-se de uma encenação “ao
medievo” tipo auto da Criação- que se desenrola no Terreiro do
castelo ,como Iniciação através dos 4 elementos : Terra-
Água–Ar–Fogo,á
semelhança do que está figurado nos capiteis da Charola e
conforme á doutrina Hermética:“a imagem do que está em cima:é o
que está em baixo
Teatro
de mistérios- dos menores aos maiores- como uma sucessão de
frescos giottescos, desde as antigas Iniciações até aos dias do
Templo; representação didáctica em defesa e louvor da Milícia
Templaria ...
Efectivamente,
baseados na tradição universal ,mas tambem na local e alicerçados
na autenticidade da Regra primitiva descrita por Regine Pernoud, tentamos
esclarecer as 3 principais acusações feitas aos templarios no seu
tempo: o beijo na boca, a vituperação da cruz e a adoração da
cabeça "bafometica"... afinal : um ósculo cortez, a
evocação da Paixão e o culto das reliquias na época...
respectivamente!
Evocando
velhos e novos ritos templarios, buscamos tambem encontrar o tronco
comum a todas as iniciações (básicamente 3 estados :
purificação, comunicação de segredos e visão plena da
Realidade ) de forma que seja útil a todas as crenças e
filosofias....
Cenográficamente
naturalista- já que é o proprio monumento real que nos envolve...
com suas muralhas, portas, arcos, frestas, capiteis, abóbada,
escadas,arvore ,tanque... em sua função original... mas que não só
os mostra, também os anima- dando-lhe vida, alma- expôe
emoções/vibrações de época...uma autêntica atmosfera do lugar,
tanto no espiritual como no temporal , acercando-nos da vida do sec
XIII.
As
cenas são como capiteis animados, estátuas que se movem, que
exprimem o ser com o gesto e o rosto, duma forma naturalista... como
Daniel que sorri e mexe o pé, no Portico da Gloria compostelano!
O
objectivo é mostrar o processo da Iniciação, a atitude do
candidato ao Templo a caminho da perfeição, através de quadros
significativos : a fera que confronta o homem junto á arvore
terrestre , a dissolução da forma material no nivel liquido, o ser
alado nas escadas , o fogo espiritual na Charola...
Usa
visões simbólicas para exteriorizar a angústia e o êxtase : o
dragão... a hóstia de luz ; nesse sentido uma representação
expressionista : expressa estados de alma, mostra a realidade
interna do personagem , a passagem para a luz do candidato, a sua
evolução espiritual...através da via probatica e do
sacrificio...”no estado de degenerescência, depois da queda, é
pela pele (pelas provas,dor espiritual,sacrificio corporal) que se
hão-de clarificar/iluminar os espiritos... diz Artaud.
Expôe o conflito da alma,
arena de luta, na visão da monja Hildegarda de Bingen
(
sec XII) , entre o bem e o mal - numa linguagem visual ,comum a
hoje e ontem…
No
amplo Terreiro,o registo interpretativo é, como não podia deixar de
ser, expressionista,na voz vibrante e no gesto largo; já no interior
da Charola,adquire um tom salmódico e comedido,próprio ao
cerimonial que aí decorre...
Acção
dramática , onde há um percurso iniciatico ,uma progressão/subida
ao Terreiro, como Purgatório/ purificação do cavaleiro, na via do
espiritual : á imagem do caminho fragoso e difícil de Dante …mas
no fim, alegre e deleitoso…como dirá o nosso Camões, (
Lusíadas,9.90) - ao atingir a platónica Planicie da Verdade ou
paraíso terreal na Charola, pequeno planalto coroando o Monte sacro
, onde reside a cavalaria mística e hiperbórea (a
norte do castelo).
Segundo
Ricardo de S.Vitor, a ascensão da montanha é o conhecimento de si e
o que se passa no cimo, conduz ao conhecimento do Divino.
Percurso
alquímico através do qual o homem transmuta sua natureza inferior
de chumbo, elevando-se ao estado purificado do Ouro.
Aqui
tudo obedece a um simbolismo : se as cores e vestes indicam uma
posição social, os objectos ,esses, não são vulgares
instrumentos, são meios de fazer pensar e sentir, estimulando a
imaginação dos convivas, que meditam e percorrem o caminho da
Demanda, ao encontro do Espirito da Luz .
Ritual
simbólico com o objectivo de obter uma vida anímica superior, onde
, em contacto físico com local marcado pelo transcendente, se
recebem ensinamentos e experimentam certas emoções ou estados de
alma.
Em
suma: uma viagem /peregrinação de aperfeiçoamento e conhecimento
: há algo mais
, para além do visível , a procurar !
-
Tudo em ambiente mágico e real - onde a qualidade é dada pelo
rigor á época e seu pensamento...incluindo uma certa "
libertas goliardica" , anti-naturalista, para acrescentar o
gozo anímico dos participantes…onde se recupera a comunhão do
teatro medieval... onde todo são envolvidos e participam em união.
Um
teatro de identificação : onde o monge se identifica com Cristo
sofredor, percorrendo arfante com a cruz a via sacra ou sendo
estigmatizado como S.Francisco; o iniciado se identifica com o
carrasco pecador, batendo ,injuriando , negando a Cristo...e chorando
de arrependimento...e o público que se identifica com a crença :
apedrejando ao vivo os carrascos/saiões na Semana Santa da
Valhadolid medieva ...ou vibrando em enthousiasmus (o divino em si)
aqui, como na Grecia antiga ... em roda da Arvore simbólica e real
, meditando em movimento.
Teatro
de exaltação, revelação, decifração e metamorfose... onde os
convivas obtêm respostas para si mesmo,renovam suas forças
interiores,sua vontade,superam-se a si proprios...tornam-se Outro!
... porque aqui divertir é ver de outra forma, uma nova visão
transformadora, elevando a sua consciência do mundo em que vivem e
da vida ...favorecendo o Espirito da fraternidade , a que apelava
J. Rousseau in carta a D’Alembert (1758) : “ convertam os
espectadores em espectáculo, façam-nos actores, façam com que cada
um se veja e goste de si proprio, para que desse modo se sintam mais
unidos”… Em suma, um teatro edificante, proporcionando uma
mudança de atitudes, do individualismo/egoísmo á solidariedade!
À
imagem- actualizante- do mistério dominical, a prática deste ritual
fará coincidir o presente da acção e o presente da representação
( re-presentar é tornar a ser presente) ; desta guisa , todos serão
iniciados, em algum grau, tal como o cavaleiro-iniciado... A
prática gestual dos conceitos essenciais, colocá-los-á no coração
do misterio imemorial. Na via da Demanda da Perfeição, "em sonho e
realidade, que faz a vitoria da condição humana"...segundo o
discurso magistral de M.Oliveira,cineasta.