A
princípio era o Bem e o Mal. Na natureza sucediam-se os dias fastos
e os nefastos em número semelhante...
Face
às variações astrais , acidentes climáticos, morte e visão
duma terra que floresce e gera frutos, os homens - esses Adões
desterrados na floresta Primordial - invocam a magia da natura que os
rodeia . A dança, o corpo, o tan-tan, o grito, são o primeiro
diálogo com o sobrenatural, exercício expiatório ou prece de uma
benesse...
E
a festa repete-se circunstancial por todas as latitudes,
sedimentando-se temporalmente os cultos sob as mais desvairadas
formas.
No
antigo Egipto, Isis, a deusa dos mil nomes, a que concedia a cevada e
o trigo, era cultuada através de uma procissão de crentes: na
frente ia o chantre com o simbolo da música, um livro de hinos
teológicos e outro de regras de conduta; seguia-o o horóscopo com o
símbolo da astrologia - um ramo de palmeiro- e os quatro livros
herméticos sobre os astros; após o que vinha o Escriba sagrado, com
plumas na cabeça, na mão a régua ,o tinteiro e a cana para a
escrita hieroglífica; depois o Estolista com a vara da justiça e a
taça das libações;finalmente o profeta com sua túnica, em cujas
dobras leva a Urna sagrada exposta. Acompanhando os ministros da
classe superior, seguem-se outras classes de fieis, como os
pastophoros ou curandeiros e os que levam os PÃES...
A
propósito dos pães em procissão - é bom lembrar - que a região
de SELLIUM se integrava no tempo dos romanos em plena rota isíaca
para Emerita, onde descansavam as legiões; há referências, pelo
menos em dois lugares, nessa via a aras votivas dedicadas pelas
sacerdotizas romanas de Isis : em Tucei e Cabrei (vide Hubner, CIL
II ) .
EIS
AS RAIZES MAIS ANTIGAS DA FESTA DOS TABULEIROS NA REGIÃO DE TOMAR
Entretanto
na Síria tem lugar os chamados Prantos de Thamuzi ou choro ritual
pela morte do deus da vegetação a quando das ceifas...
Nos
primeiros séculos da nossa era encontramo-los na Andaluzia (mais
tarde travestidos na Semana Santa sevilhana!) trazidos pelos
mercadores e mareantes fenícios - os cananeus biblicos - cujos
cultos se mamtêm inalteráveis durante milénios...
Da
mesma área, também os adeptos de Atis-Cibele importam para o
império romano o costume de imponentes procissões aquando dos
equinócios de Março, onde se transporta um pinheiro-simbolo da
divindade-envolvido em fitas de cor roxa; no seu séquito, as
mulheres choram : "héu, héu, Salvator noster"...tal como
mais tarde nos rituais da Paixão...
Já
na era cristã,a 25 de Abril em Roma,pratica-se a "ambarvalia":
procissão através dos campos para pedir boas colheitas;o cortejo em
fila , devido à estreiteza dos caminhos,seguindo desde o Corso até
ao bosque sagrado dos arredores,onde se sacrificam as vísceras de um
animal.
No
seculo IV o papa Libério pensou adaptar esta procissão aos tempos
cristãos,mas mantendo o itinerário...Mas é só no século IX,com
Leão III , que se establece com vinculo certo na semana de
Pentecostes, a chamada penitencial ou rogativa,onde o rei descalço e
o povo participam, percorrendo os campos durante 3 dias, com a cabeça
coberta de cinzas.
Na
Ligúria, leva-se na procissão o Draco: estandarte que tinha pintado
um dragão,simbolo do diabo.Durante os três dias, o Draco tomava
várias posições segundo uma simbologia determinada. Assim no
primeiro dia, ia á frente da procissão, de cauda erecta -
estandarte vertical - representando Lucifer, o principio do Mal,
arrogante...
No
segundo dia,quando as orações começam a fazer efeito, o Draco
passava para o meio da procissão e "baixa a bola" ou seja
a cauda(!)-estandarte inclinado. Finalmente no 3ºdia o Draco passava
para o fim da procissão e ia de cauda plana, rastejante - estandarte
deitado - significando que já fora vencido...
Na
passagem do milénio a febre processional intensifica-se perante o
terror do desconhecido. A própria missa é uma sucessão de
procissões: ao introito a dos clerigos pelo deambulatório,ao
Ofertório a dos crentes,a comunhão até ao altar, acompanhadas do
cãntico dos salmos bíblicos.
A
sociedade medieval torna-se uma civilização visual: nas cerimónias
solenes desfilam o cruciferário,o evangeliário, os candelários,o
turibulário,etc...
Toda
a procissão é como uma viagem primordial até ao Deus Criador de
todas as cousas visíveis e invisíveis.Surgem relatos de viagens
fantásticas nesse sentido, como o da navegação irlandesa do abade
S.Brandão e seus monges,em demanda da ilha mística,errando durante
sete tormentosos anos,pelas águas da iniciação e da purgação ou
a provação regeneradora até atingir a Terra da Promessa.
Também
a lenda da viagem de Túndulo,em visão ou sonho,percorrendo os
infernais subterrâneos onde se torturam os condenados às trevas,ao
fogo e ao gelo; depois a ansiedade do Purgatório e por fim as
delicias do banquete celeste...
Imitando
a viagem biblica do Rei David, a quando do transporte da Arca da
Aliança, as peregrinações tornam-se a mais perfeita forma de
ascese dos tempos da cavalaria. Viagens de penitência,purificação
e gozo,até junto dos tumulos e reliquias dos Lugares Santos:
Compostela, Roma e Jerusalém.Aqui se demanda a Vera Cruz e a Arca.
Para
os vilões ou peonagem que não podiam ir tão longe, resta-lhes por
exemplo a chamada Légua de Jerusalém, na catedral de Chartres
(sec.XIII), labirinto de 12 m de diametro e 200 m de comprimento, que
os fieis percorrem até atingir o centro, significante da Jerusalém
Celeste...
Ou
os monges que não saiem de seu mosteiro,viajando processionalmente
pela quadratura de seus claustros,e retornando ciclicamente ao mesmo
lugar,orando e meditando,na demanda da Revelação dos mistérios de
Deus.Assim por exemplo, em dia de aniversário de defuntos, no
convento de Thomar: depois da missa,se ordena a procissão desde a
Charola à Claustra do Cemitério,indo diante da cruz o acólito com
a água benta para aspergir as sepulturas,o celebrante com capa preta
e o diácono a sua esquerda com o hissope.Percorrendo várias
estações ou paragens- onde haverá preces e cânticos de responso-
voltarão à igreja, aonde porão a cruz à cabeça do túmulo
simbólico, ali feito com um pano de cruz de tela no chão ,cercado
de círios; lançando-lhe o capelão por fim a benção.
...Entretanto
já o Pontifical dos Santos substituira o velho calendário
lunar/agrícola: em Portugal,caso único na Europa,os próprios dias
da semana dedicados às divindades astrais(dia de
lunes,martes,etc),se convertera numa série ordenada de dias de féria
liturgica romana(2ªfeira,3ª feira,etc)...
O
próprio municipio de Lisboa establece em 1365 que dai em diante e"em
este termo non se cantem Janeiras nem Maias nem a outro mês do
ano"...As maias,eram ritos naturalistas,com flores no inicio do
mês de Maio,suspendendo-se grinaldas nas ombreiras das
portas-saudando a Primavera florida- como se praticava no tempo de
frei Luis de Sousa na ermida da Senhora da Escada ao Rossio em
Lisboa, justificando-se nessa altura tal ,como sendo comemoração de
quando N.Senhora fugia para o Egipto e fora denunciada por uma flor
aos seus perseguidores( em Minde diz-se que foi o barulho de uma
vagem de tremoço pisada) vindo então um arcanjo a pôr flores em
cada porta,confundindo o inimigo...
Mas
todavia, as práticas ligadas às anteriores crenças mantêm-se na
memória do povo : acredita-se nos encantamentos e agoiros, rogam-se
pragas...os santos óleos e a hóstia usam-se para praticar
sortilégios ( como no caso do milagre de Santarém, do sec XIII).
Acontece
uma fusão de crenças e prácticas,uma assimilação e ritualização,
de que a própria Igreja aproveita a forma tentando injectar novos
conteúdos.
A
Procissão do Corpo de Deus
O
séc. XIII é a centúria de todos os cultos: celebra-se a Paixão de
Cristo, a Virgem, o Espirito Santo, o Corpo de Deus em exposição;
com parte religiosa e profana.
Na
festa da Hóstia, a parte profana está a cargo das corporações de
mesteres, cada uma com seu tema, de obrigatória presença, mestres e
aprendizes,com seu pendão e figurações.Conforme sua ordem de
importancia social, assim temos á frente os hortelães com seu andor
representando uma almoinha aos ombros,depois os vendedores de pregão
com suas danças judengas e mouriscas ao som de gaitas,adufes e
pandeiros.
Seguem-se
os almocreves,moleiros e peliteiros com seus pendões. O Dragão
sarapintado movido por 20 aprendizes de sapateiro enfiados no seu
bojo e á sua frente a dama "nua" (pouco vestida) provocando o draco em
danças extácticas... acompanhada de muitos mouros "falando
desonestidades"!
Uma
vintena de alfaiates transporta a Serpe fabricada de madeira e
vestida por eles.Depois os chamados homens de armas ou seja :
ferreiros, seleiros, barbeiros, latoeiros, rodeando S.Jorge no andor
lutando contra a Serpe.
Carpinteiros
e calafates arrastando galés; oleiros trazendo acorrentados 2 diabos
fazendo momices e trejeitos.
Enfim,
profanidades que tanto escandalizam D.Sebastião, como maravilham
Filipe II anos mais tarde...
A
fechar os mesteres mais nobres: ourives, moedeiros, tabeliães,
escrivães e boticários.
Demarcando
posição : o alferes e o almotacé com suas bandeiras, seguindo-se
os cavaleiros das Ordens militares e a multidão de monges de várias
cores. A seguir a corte e o rei rodeando a hóstia elevada nas mãos
do bispo sob pálio...rematando o místico espectáculo.
No
sec.XVIII retiraram-se as figurações e as folias,salvou--se o
S.Jorge a cavalo...a procissão ficou mais eclesiástica e menos
popular, mas mais luxuosa.
À
frente as bandeiras dos oficios da casa dos Vinte e Quatro com seus
patronos,S.Jorge armado de sua lança, capacete de plumas coberto de
diamantes em cavalo branco no meio de outros cavaleiros, trombetas a
cavalo. Segue-se o homem de ferro com sua armadura, o condestável,
ladeado de pagens,vestido a ouro e pedras preciosas.Depois as
confrarias de opas vermelhas, milhares de frades brancos, negros e
castanhos, empunhando tochas, centos de cavaleiros das ordens
militares de Cristo e de Santiago, o clero e os cantores de pastoral.
O cortejo real e penitencial; cónegos e turibulários; finalmente o
S.Sacramento em relicário sob pálio... a multidão de povo atrás
respeitosa.
No
final do seculo passado, o S.Jorge (presente desde Aljubarrota) em
luta com o Draco, acabou tanbém de ser irradiado da Procissão
lisboeta...hoje mantem-se apenas em regiões como Penafiel e Monção
no Minho onde tem grande assistencia a luta entre o Bem e o Mal no
terreiro que só termina quando o S.Jorge a cavalo trespassa com a
lança os costados do monstro de cabeça articulada e homens
dentro...
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